ESTUDO PARA CLARINETA DE GAETANO DONIZETTI

Joel Luís Barbosa

O Estudo para Clarineta de Gaetano Donizetti (1797-1848), cujo manuscrito é de 1821, está se tornando uma importante obra do repertório desse instrumento desde a sua primeira publicação pela Henry Litolff´s Verlag em 1970. Ele tem feito parte da lista de obras de diversos concursos internacionais - foi obra obrigatória em uma das competições mais relevantes de clarineta: 41a Competição Internacional da ARD, Munique. Sua aplicação didática é muita versátil. Ele não inclui apenas, como tradicionalmente ocorre na maioria dos estudos para clarineta, elementos para o desenvolvimento da destreza motora, da técnica de articulação e da habilidade de emissão de ar, mas também um tratamento composicional que pode ser útil para o aprimoramento da compreensão e interpretação de estruturas musicais complexas. São esses aspectos que o fazem destacar entre as obras do repertório clarinetístico.

A compreensão da estrutura musical de uma peça está diretamente ligada a sua boa interpretação. "Seguindo a direção de C. P. E. Bach . . . , Schenker acreditava que uma composição só poderia ser reproduzida corretamente se o intérprete compreendesse as intenções do compositor tais como reveladas na partitura e se desenvolvesse uma sensibilidade auditiva referente a hierarquia dos valores tonais que ela expressa." (Forte, 1977, pg. 8) 1 Forte menciona que "Schenker elaborou suas formulações teóricas a partir de experiências auditivas de composições musicais e as verificou na mesma fonte. Além disso, suas técnicas de análise e seus conceitos analíticos estão diretamente relacionados às práticas interpretativas e composicionais" (Idem, pg. 7). 2 Uma interpretação de qualidade deste Estudo de Donizetti revelará seu aspecto mais significativo: a maestria de sua construção. Ele está construído sobre uma estrutura musical que se encontra entre aquelas que demonstram "a capacidade" de "percepção da harmonia primária" por parte do compositor, a qual, segundo Schenker, "é um privilégio dos gênios, proveniente da natureza" (Schenker, 1977, pg. 39). 3

Segundo Schenker, essa estrutura musical, chamada de Ursatz e que chamaremos de "Estrutura Básica", projeta a tríade da tônica. Ela está dividida em duas vozes contrapontísticas: a "Linha Fundamental", Urlinie, e o "Baixo Arpejado", Bassbrechung. A Linha Fundamental, que é a voz superior, é constituída pela seguinte sucessão de notas: mediante - super-tônica - tônica. O Baixo Arpejado é formado pela seguinte seqüência de notas: tônica - dominante - tônica. A fim de chegar à Estrutura Básica, uma obra pode ser reduzida a três níveis: "plano de frente", "plano intermediário" e "plano de fundo". De maneira que esse último plano é a própria Estrutura Básica, a qual está representada no Exemplo 1, onde a seqüência "3 2 1" eqüivale à Linha Fundamental e a "I V I" ao Baixo Arpejado. Ela será representada neste trabalho da seguinte maneira: 3/I-2/V-1/I.

Exemplo 1:

No Estudo de Donizetti, o evento chamado por Schenker de Anstieg, a parte da composição que conduz a primeira função da Linha Fundamental, 3/I, usualmente construída em movimento ascendente, conduz ao quinto grau da escala, dominante, e não ao terceiro. Isso é confirmado pela forte presença da quarta aumentada ( fa sustenido), que resulta na modulação para a dominante. Schenker diz em seu livro Der Freie Satz que "o movimento do Anstieg para o 5/I é particularmente bem efetivado quando o quarto grau da escala é usado em sua forma aumentada." (citado por Forte, 1977, pg. 22) Ele usa uma conhecida Ária em Si Bemol de Haendel, no Anhang do livro Der Freie Satz e no Der Tonwille, para mostrar uma "técnica melódica especial e ininterrupta de Plano de Fundo" (Idem, pg. 22). Essa estrutura ininterrupta é composta apenas de uma parte, 5/I-4/V-3/I-2/V-1/I, diferente das formas interruptas: 3/I-2/V ' 3/I-2/V-1/I. A Estrutura Básica deste Estudo tem essa mesma forma ininterrupta e está constituído pelas notas Sol/I-Fa/V-Mi/I-Ré/V-Dó/I, as quais se localizam nos compassos 2, 23, 95, 125 e 127, respectivamente (ver Exemplo 2). Sendo esta uma peça para clarineta solo, as notas do Baixo Arpejado foram extraídas da funções harmônicas geradas pela linha melódica e não, como usualmente, da linha do baixo.

Exemplo 2:

Plano de Fundo:

Plano Intermediário:

Plano de Frente:

A Estrutura Básica, 5/I-4/V-3/I-2/V-1/I, desta obra de Donizetti se localiza em pontos estratégicos da sua forma musical, forma sonata. As funções relacionadas com a tônica se encontram em locais da forma que são responsáveis pela determinação da tonalidade, seções temáticas ou conclusivas. As funções relacionadas com a dominante se localizam em áreas de transição. O 5/I é estabelecido no tema "A" da exposição e é atingido pelo movimento melódico mi-fa-fa#-sol, compasso 1, onde o fa# desempenha a função que determina o 5/I como primeira nota da Estrutura Básica. Ele, o 5/I, é confirmado pela repetição do movimento melódico que o estabelece, compassos 3-4, e pela linha melódica dos compassos 5-11.O 4/V se localiza exatamente no centro da modulação que conduz para o tema "B" da exposição, compassos 10-37, o qual é exposto sobre a dominante. Ele é enfatizado por seis meios: 1) por sua altura - sua nota, fá, é a mais aguda da exposição e desenvolvimento, 2) por ser alcançado através de um grande intervalo melódico ascendente, 17a, 3) por sua importância harmônica - sétima do acorde de dominante, 4) por dividir a transição entre os temas "A" e "B" em duas partes, 5) por seu tratamento rítmico - ele possui um desenho rítmico (ver Exemplo 3) que o contrasta dos outros de seus contexto; esse desenho é precedido e sucedido por contínuas repetições de grupos de quatro semicolcheias, os quais predominam a obra toda, e 6) por seu tratamento melódico - seu compasso possui um formato melódico que o contrasta das linhas melódicos que o circunvizinham nesta seção de transição. Na região do tema "B" da exposição, o 2/V é usado como uma variante do 4/V, como podemos confirmar no desenvolvimento, onde o 4/V volta a ser reafirmado, compasso 79.

Exemplo 3 (compasso 23):

A nota mi do 3/I é atingida através de uma enfática progressão melódica e harmônica de quintas que ocorre na segunda metade do desenvolvimento: Dó/I-Fa/IV-Si/VII-Mi/V/VI-La/VI-Ré#/II#Dim.-Mi/IIIMaior, compassos 88-94. Outro tratamento usado pelo compositor para estabelecer o mi como a próxima nota da Estrutura Básica da obra foi repetir, no final dessa progressão, quatro vezes seguidas o movimento re#-mi, compassos 91-94, e manter na última a duração do mi por quatro tempos, a nota mais longa de toda a peça. Finalmente, no compasso seguinte, 95, o mi na função 3/I é alcançado no tema "A" da recapitulação e confirmado na sequência desse mesmo tema, compassos 97 e 98, no tema "B", compassos 102, 107, 112 e 116, e no final dessa região temática, 122 e 123 .

O 2/V é usado na transição do enfatizado 3/I para a conclusivo 1/I. Essa transição encerra a área temática da recapitulação, compassos 116-127. Ela inclui seis compassos de virtuosismo e malabarismo que conduzem para o 2/V, compasso 125, onde é destacado com trilo. O 1/I encerra essa área temática, compasso 127, e é repetido sete vezes na coda: quatro vezes nos compassos 124-134 e três no 135, último compasso da obra.

A Estrutura Básica deste Estudo é retratada através de formações reduzidas em toda a obra, determinando a estrutura musical das diversas seções de sua forma. Ela é reduzida em duas formas: 1) completa, 5/I-4/V-3/I-2/V-1/I, e 2) parcial, 5-4-3-2-1, incluindo apenas a Linha Fundamental. A primeira forma é mais empregada e se localiza nos compassos 1-3, 3-5, 24-26 (sobre o VI grau), 28-30, 38-54 (sobre o V grau), 56-65 (sobre o V grau), 95-97, 102-118, 122-127 e 127-131. A segunda forma aparece apenas nos compassos 68-88. Enquanto a forma ampliada da Estrutura Básica, iniciada no começo da obra e concluída no final da mesma, dá o formato da estrutura geral deste Estudo, a presença de suas formações reduzidas em diversos locais da forma dá unidade a obra.

Donizetti trata a linha da clarineta de tal maneira que simula mais de uma voz. A peça mostra um diálogo de duas vozes que aparecem de maneiras consecutivas e simultâneas. A maneira consecutiva predomina a obra e a outra é utilizada mais para concluir alguns trechos da forma musical. Um bom exemplo da maneira consecutiva está na exposição do tema "B", compassos 38-43. Neste caso o compositor distingui as vozes pelo tratamento rítmico. No Exemplo 4, onde as vozes são apontadas pela letra "a" e "b", nós podemos observar uma maior atividade rítmica na voz "b". Uma outra forma do compositor distinguir as vozes, ainda na maneira consecutiva, é através do tratamento melódico. No Exemplo 5 ele inicia as vozes com movimentos melódicos opostos; a voz "a" começa com movimento melódico descendente, enquanto a "b" com movimento ascendente.

Exemplo 4 (compassos 38-43):

Exemplo 5 (compassos 30-31):

Um exemplo da maneira simultânea pode ser observado na conclusão da exposição do tema "A", compassos 7-9, ver Exemplo 6A e 6B. No Exemplo 6B as duas vozes são identificadas pelas letra "a" e "b". Elas são construídas sobre uma terceira voz que tem função harmônica, letra "c" do Exemplo 6B. O clímax da conversação entre essas duas vozes, que é também o ápice da obra, está no final do Estudo, Exemplo 7. Nesse caso o compositor escreve as frases com movimentos melódicos contrários para as diferenciarem. A voz "a" começa sozinha com um movimento melódico ascendente, a outra voz, "b", responde em movimento descendente, e as duas se juntam, em oitavas e depois uníssono, na frase ápice da obra, concluindo no 1/I da Estrutura Básica da obra. Essa frase ápice é enfatizada pela sua extensão de registro (três oitavas; a maior da obra), por seu movimento melódico (ascendente), por sua decoração (trinados) e pela inclusão do movimento da Estrutura Básica 2/V-1/I. Além de diferenciar as vozes, esses movimentos melódicos contrários dão equilíbrio a movimentação da linha melódica da obra.

Exemplo 6A (compassos 7-9):

Exemplo 6B (compassos 7-9):

Exemplo 7 (compassos 122-127):

Finalizando, o conhecimento da existência destes tratamentos composicionais no Estudo de Donizetti vem enriquecer e direcionar sua interpretação. Através de sua Estrutura Básica é possível identificar a "hierarquia dos valores tonais" nela existente (Forte, 1977, pg. 8). Consequentemente, determinar os principais pontos das seções da sua forma, os quais, na execução, devem ser os alvos da condução melódica e receber ênfases expressivas proporcionais aos seus valores tonais hierárquicos, dando um formato geral a obra. Além disso, através da identificação das formações reduzidas da Estrutura Básica é possível hierarquizar a importância das frases e das notas dessas frases, ajudando a modelar e uniformizar as várias seções da forma. Em outras palavras, o reconhecimento desses aspectos analíticos contribui para que a interpretação desta obra revele aquilo que ela tem de mais valoroso, sua estrutura musical, que, segundo Schenker, demonstra uma "capacidade" composicional que "é privilégio dos gênios" (Schenker, 1977, pg. 39).


Notas de Rodapé

  1. "Following the lead of C. P. E. Bach here as elsewhere, Schenker believed that a composition could be reproduced correctly only if the performer had grasped the composer's intentions as revealed by the score, and if he had developed an aural sensitivity to the hierarchy of tonal values which it expressed." [Volta]

  2. "Schenker consistently derived his theoretical formulations from aural experiences with actual musical compositions, and verified them at the same source. Furthermore, his analytic techniques, as well as his concepts, are directly related to performances and compositional practices..." [Volta]

  3. "The capacity to have such a perception of the primary harmony is a prerogative of genius, derived from nature." [Volta]


Bibliografia

Forte, Allen. (1977) Shcenker´s Conception of Musical Structure em "Readings in Schenker Analysis", editado por Maury Yeston. New Haven: Yale University Press.

Schenker, Heinrich. (1977)Organic Structure in Sonata Form em "Readings in Schenker Analysis," editado por Maury Yeston e traduzido por Orin Grossman. New Haven: Yale University Press.