Avaliação em música: considerações para as práticas interpretativas

Eduardo Frederico Luedy Marques

A avaliação das práticas interpretativas nas escolas de música é um tema que carece de maior atenção. Porquanto não pareça constituir-se ainda como um problema maior da área de educação musical, tal aspecto—que inequivocamente diz respeito à educação musical—não figura como procedimento teoricamente embasado e filosoficamente consciente por parte dos professores de instrumento e de práticas interpretativas.

Observa-se no ensino das práticas interpretativas, regra geral, que os processos avaliativos—a aplicação de testes e posterior emissão de escores e juízos de valor acerca dos desempenhos dos alunos—são feitos tendo-se por base critérios subjetivos e imprecisos. Tal situação decorre do fato de que os professores de música lidam com uma ampla gama de variáveis inerentes aos modos de conhecimento—não somente circunscritos às atividades puramente musicais—de tal modo que comportamentos envolvidos numa única atividade musical podem ser considerados em termos cognitivos, sensoriais, psicomotores, e afetivos; ocorrendo concomitantemente, com maior ou menor predominância de um aspecto sobre o outro. Esta diversidade torna delicada a questão do quê e de como mensurar e avaliar, mas também de como quantificar a miríade de pequenas atividades envolvidas nas atividades musicais; e mesmo se se deve seccionar estes aspectos, ao invés de considerá-los como um todo indivisível.

De acordo com Boyle e Radocy:

O âmbito de comportamentos que podem ser chamados de comportamentos musicais é enorme, em tipo e em complexidade. A execução musical (cantar ou tocar um instrumento individualmente ou em grupo), a leitura ou escrita musical, improvisar ou compor música, escutar música, mover-se à música, ler sobre música, ter uma resposta sensorial (afetiva ou estética) à música ou analisar música são todos comportamentos musicais. (1987, 3). 1

Medir e avaliar, contudo, a despeito de suas complexidades, são atividades necessárias—e, de certo modo, corriqueiras—ao processo educacional. Mas se por um lado estas ocorrem amiúde em quase toda a educação formal, muito comumente, por outro, constata-se que os professores têm procedido em suas avaliações porque assim se espera que as façam. 2

Os educadores estão sempre envolvidos com processos avaliativos—sejam eles sistemáticos ou não. O processo de tomar decisões e implementar estas decisões, "antes, durante e após a instrução, de modo a aumentar a probabilidade de aprendizado", 3 é parte integral de qualquer processo educativo e, como tal, envolve processos avaliativos. As questões que ora se apresentam aos professores de música, e mais especificamente àqueles da área das práticas interpretativas, referem-se, pois, à ausência de objetividade e de parâmetros definidos para a obtenção e julgamento dos dados obtidos através das testagens e mensurações aplicadas.

Como ponto de partida para o estabelecimento de tais parâmetros e objetivos, e paralelamente ao aprofundamento das questões relativas a avaliação e mensuração, faz-se necessária a compreensão dos construtos utilizados quando se deseja fazer inferências de comportamentos musicais diversos, diferenciando-os entre si, tais como talento, aptidão, musicalidade, inteligência musical, sensibilidade, habilidade, etc.

Segundo Boyle:

A falta de consenso acerca da terminologia e ao que é implicado pelos respectivos termos têm composto não apenas os problemas na mensuração e avaliação dos potenciais, habilidades e aprendizados musicais dos alunos, mas também quanto à medida pela qual os professores de música inclinam-se a levar em conta tais informações como base fundamental para decisões que podem ter significado importante nas oportunidades individuais de aprendizado e experiências com música (Boyle 1992, 247). 4

De acordo com o autor, a compreensão clara da terminologia e o que ela implica é fundamental para o uso efetivo dos dados avaliativos no processo educacional. E, apesar de que o autor considere que uma base sólida de testagem e mensuração dos dados seja o melhor caminho para assegurar uma avaliação acurada, somente os dados provenientes de testes e mensurações não asseguram por si informações completas quanto às decisões a serem tomadas. Estas considerações dizem respeito aos modos de conhecimento empregados durante a observação e compreensão dos fenômenos e às maneiras de processar as informações obtidas para a formação do conhecimento referente a estes fenômenos.

A informação, compreendida como a reunião de dados informativos acerca de um fenômeno ou objeto particular de estudo, compreende outras informações que são processadas através dos dois domínios amplos de conhecimento humano: o subjetivo e o objetivo. Ambos derivam os dados informativos a partir dos diversos modos de conhecimento que possuímos, sendo o conhecimento subjetivo realizado preponderantemente através de observações não sistemáticas, ou informais, que dependem das interpretações feitas à luz da experiência, conhecimentos prévios, preconceitos, intuições e sensações do observador. Por outro lado, o conhecimento objetivo deve primar pela tentativa de isolar tais aspectos que podem interferir num julgamento imparcial e, portanto, não afetado pelos preconceitos e experiências do observador. (Boyle e Radocy 1987).

A avaliação lida com os conhecimentos subjetivos e objetivos, mas a informação objetiva, proveniente de testes e mensurações, é essencial para uma avaliação adequada de objetos de estudos complexos e altamente inferenciais como é o caso dos comportamentos musicais. Não se postula aqui, contudo, a negação da importância das informações subjetivas para a avaliação dos comportamentos musicais. Antes, defende-se a combinação dos dados obtidos através dos procedimentos de testagem e mensuração (informação objetiva) com o juízo particular e profissional de professores experientes (informação subjetiva). Boyle e Radocy, a este respeito, afirmam que "mesmo procedimentos de avaliação que são inerentemente subjetivos, tais como audições, podem tornar-se mais válidos quando os forçamos a terem focos mais objetivos" (1987, 2).

Tais considerações dizem respeito, por sua vez, às funções a que os dados avaliativos da habilidade musical se prestam: de desempenho, diagnóstica, de aptidão e de atitudes. Sem que se tenha em mente as funções dos atos avaliativos, a elaboração dos testes e as técnicas de mensuração não poderão dar o auxílio efetivo e acurado para as decisões a serem tomadas. Apresenta-se a seguir, resumidamente, as funções avaliativas: 5

 

  1. desempenho: examinar o efeito, no comportamento dos alunos, das experiências de aprendizagem pela qual eles passaram;
  2. diagnóstica: determinar as habilidades atuais dos alunos, classificando-os de acordo com suas capacidades ou dificuldades quanto a determinadas habilidades musicais; esta função possibilita a uma melhor tomada de decisões quanto a reforços ou modificações necessárias ao comportamento dos alunos;
  3. aptidão: tomar decisões quanto aos comportamentos musicais futuros; ou seja, esta função envolve o uso dos dados de testagem e a mensuração destes como uma base para a determinação dos potenciais dos alunos para um futuro processo de ensino-aprendizagem;
  4. atitude: tomar decisões instrucionais levando-se em conta os interesses e predileções musicais dos alunos; tal função é especialmente importante quando os aspectos do domínio afetivo são considerados na relação de ensino-aprendizagem.

As particularidades e as implicações que cada função possui para o processo educativo mereceriam um estudo à parte. No entanto, o que se pretende, no presente texto, é chamar a atenção para os aspectos fundamentais envolvidos por cada uma destas funções. Como o professor de práticas interpretativas tem se posicionado frente a estas funções? Qual a sua consciência frente as implicações de seus atos avaliativos, quando da classificação dos alunos como resultado de um processo avaliativo? Que aspectos dos domínios afetivos são levados em conta para o incremento da relação ensino-aprendizagem? Que estratégias de ensino têm sido derivadas a partir dos juízos feitos durante as avaliações? Que filosofia tem orientado os educadores quanto aos testes de aptidão (considerando o contexto sócio-cultural e condições educacionais prévias ao processo educativo em música)?

As questões anteriores são amostras limitadas de todo um enorme manancial de objetos de estudo que podem derivar de procedimentos avaliativos. E o intuito do presente trabalho é o de despertar um maior interesse, por parte dos professores das práticas interpretativas, para o desenvolvimento de um pensamento e de uma prática mais acurada nas decisões a serem tomadas.

Por fim, procurando contextualizar todas estas considerações acerca da avaliação em música, poderíamos citar, como um exemplo de ausência de diretrizes e embasamento filosófico definidos, o teste de aptidão, ou de habilidade específica, que é realizado anualmente em nossa instituição, a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, como parte dos exames vestibulares, a que os candidatos às vagas dos cursos de Licenciatura em Música, Instrumento, Canto, Regência e Composição são submetidos. De fato, não tem havido, salvo raras exceções, a preocupação em controlar ou sequer de atenuar os efeitos dos possíveis viéses dos elaboradores dos testes nos conteúdos e na avaliação dos dados obtidos. 6 Aliás, cabe mencionar que não tem havido um procedimento uniformemente adotado quanto aos critérios de avaliação dos dados obtidos, podendo estes variarem de acordo com as crenças e filosofia dos professores que estiverem presentes no momento da avaliação e emissão dos escores.

Este é um grave problema. O distanciamento que as bancas examinadoras mantêm em relação à realidade sócio-econômica e cultural de grande parte dos indivíduos que procura estudar nesta instituição, tem feito com que os testes e os procedimentos adotados para a avaliação dos dados não considere o viés sócio-cultural desta clientela. Tal aspecto em nada tem contribuído para que o descompasso entre as realidades de dentro e de fora da instituição—ainda mais quando consideramos a demanda existente por educação musical—seja atenuado. Ao mesmo tempo, por não nos preocuparmos com a avaliação como objeto de pesquisa, não temos podido assegurar melhores oportunidades de aprendizado e, consequentemente, sequer a elaboração de estratégias de ensino eficientes para lidar com as dificuldades que, devido às diferenças entre programas de ensino e realidade sócio-cultural dos alunos, ocorrem com freqüência na aprendizagem musical dos alunos.

As exceções a que nos referimos acima têm contribuído para o desenvolvimento de estudos nesta área. Contudo, são iniciativas ainda incipientes dado o enorme campo de atuação ainda inexplorado, devido ao pouco tempo de existência e também devido ao fato de que estas iniciativas têm partido de um grupo que, infelizmente, representa uma pequena parcela de professores interessados no desenvolvimento de questões mais aprofundadas em educação. 7

A nosso ver, um aprofundamento nas questões que envolvem a avaliação em música poderia nos ajudar a encontrar nossos próprios problemas, ou, em outras palavras, poderia ajudar a problematizar nossas dificuldades na relação ensino-aprendizagem. Não podemos deixar de enfatizar, por fim, a importância que todas estas considerações assumem não somente para o incremento da relação ensino-aprendizagem, mas fundamentalmente para o levantamento de questões e, conseqüentemente, de tópicos de pesquisa para a área das práticas interpretativas, tão carente de investigação científica no atual contexto de ensino de música em nosso país.


Notas de Rodapé

  1. The range of behaviors that may be called musical behavior is great, both in type and complexity, Musical performance (singing an instrument individually or in a group), reading or writing music, improvising or composing music, listening to music, moving to music, reading about music, having a feeling response (affective.aesthetic) to music, or analyzing music are all musical behaviors [Volta]

  2. Tal aspecto diz respeito ao que Boyle e Radocy (1987, 7) chamam de "função meramente ritualistica" da avaliação; mas também ao que eles consideram como "controle externo", ou seja, ao conflito que pode ocorrer quando o professor não tem autonomia para decidir que procedimentos avaliativos utilizar, quando os programas de testagem e de currículo são impostos de maneira inflexível por um determinado sistema educacional (1987, 28) [Volta]

  3. Hunter apud Taebel (1992, 310). [Volta]

  4. The lack of consensus about terminology and that wich is implied by the respective terms has compounded not only the problems in the measurement and evaluation of students' musical potencials, abilities, and learnings, but also the extent to wich music teachers are willing to rely on such information as primary bases for decisions that may have important bearing on individual students' learning opportunities and experiences with music. [Volta]

  5. Baseado em J. David Boyle e Rudolf E. Radocy, Measurement and Evaluation of Musical Experiences, (New York: Shirmer Books, 1987), pp. 8-13. Serão consideradas aqui apenas as funções que dizem respeito aos indivíduos. Apesar de que as funções concernentes aos programas serem de importância fundamental para a estruturação curricular e programática de qualquer área de música. [Volta]

  6. A este respeito ver: J. David Boyle e Rudolf E. Radocy, Measurement and Evaluation of Musical Experiences, (New York: Shirmer Books, 1987), p. 41. [Volta]

  7. Dentre estas inciativas pioneiras e que têm logrado êxito, podemos citar as Oficinas de Violão em Grupo e as Oficinas de Piano em Grupo, coordenadas respectivamente pelas professoras Cristina Tourinho e Diana Santiago. As considerações acerca do êxito que estes projetos têm alcançado podem ser atribuidas a fatores como: não evasão e encaminhamento de alunos, que passam por estes projetos, para a graduação em música. [Volta]


Bibliografia

Boyle, J. David e Rudolf E. Radocy. 1987. Measurement and Evaluation of Musical Experiences. New York: Schirmer Books.

Boyle, J. David. 1992. "Evaluation of Music Ability". In Richard Cowell, ed. Handbook of Research on Music Teaching and Learning. New York: Schirmer Books.

Santiago, Diana. 1994. "Mensuração e Avaliação em Educação Musical". Fundamentos da Educação Musical. Série Fundamentos, (junho): 136-164.

Santiago, Diana. 1988. Measurement and Evaluation in Music Education: a position paper. Monografia não publicada.

Taebel, Donald K. 1992. "The Evaluation of Music Teachers and Teaching". In Richard Cowell, ed. Handbook of Research on Music Teaching and Learning. New York: Schirmer Books.