Gavotte I BWV 995: redução e performance musical

Mario Ulloa

Introdução

Muitas peças, como a Gavotte I BWV 995, aparentam ser construídas basicamente através de relacionamentos verticais, contudo, existe a possibilidade de aborda-las como um conjunto de projeções de linhas melódicas horizontais e utilizar esta abordagem como uma ferramenta de controle para a performance musical.

Utilizando as técnicas de redução, podemos determinar quais são as notas estruturais e subordinadas de uma peça dada. Na realidade, é pouco o que nós intérpretes temos a fazer com as notas estruturais: elas expressam seu significado por si mesmas. Nosso papel principal é conduzir as notas subordinadas, que afinal, são as que dão movimento à peça em questão.

Para este trabalho escolhemos quatro exemplos de reduções desta Gavotte. Nestas reduções mostramos, desde diversas perspectivas, as funções das notas subordinadas em relação às notas estruturais assim como as funções de linhas melódicas projetadas ao longo de vários compassos. Baseados neste tipo de análise, sugerimos algumas atitudes de interpretação que podemos tomar em relação às notas e linhas melódicas.

Exemplo 1


No exemplo 1 apresentamos uma redução das principais linhas da primeira frase da peça: 1) linha melódica, 2) linha do baixo e 3) linha do meio. Na linha melódica descendente Mib-Re-Do-Sib observamos o Mib (c.1) atuando como bordadura em relação ao Re estrutural e ao Re do c.2. Essa bordadura é o primeiro evento que devemos destacar. A nota Do (c.3) prepara o Do (c.4) seguinte, que atua como retardo, isto é, a dissonância mais forte. Para a resolução dessa dissonância sugerimos dissolver o grupo de colcheias do fim da frase, como indicado pelo regulador de dinâmica. Assim, entendemos que existe uma relação tensão-relaxamento inerente aos compassos 1® 2 e 3® 4, que representamos entre parêntesis.

A linha do baixo desenha um ciclo de quartas, ou seja, uma seqüência dominante® tônica que podemos enfatizar através da articulação: poco staccato na função dominante e poco portato na função tônica sugerido entre parêntese.

A linha interna Sib® La, Sol® Fa#® Sol, que desenha um contraponto sincopado da quarta espécie, acrescenta outro plano que podemos conduzir através do procedimento implícito de preparação–tensão-relaxamento.

Exemplo 2

 

No exemplo 2 observamos que, após a barra de repetição, a linha melódica Si-Do-Re-Mib é ascendente, em oposição à primeira frase da peça. O âmbito da linha do baixo Sol (c.13)® Do (c.16) indica uma expansão dominante-tônica. Nos cc. 17-20, Bach seqüencia a linha ascendente La-Sib-Do-Re (c.17-20) e a relação dominante-Tônica no baixo Fa (c.17)® Sib (c.20) uma segunda abaixo. Em ambas frases (c.13-16) e (c.17-20), podemos apoiar o impulso da linha ascendente e o movimento do baixo utilizando recursos como diminuendos (crescendos) ou ainda utilizando leves modificações agógicas.

A nota Do (c.21), encontra-se na frase cadencial e podemos projeta-la como antecipação da nota Do estrutural inserida no grupo de colcheias do c.23, que repousa no Sib estrutural. A projeção mental desta nota antecipada é um fator importante que pode ajudarnos no direcionamento da frase. As notas representadas em tamanhos menores podem ser executas utilizando staccattos que ajudariam na caracterização rítmica da Gavotte (duas semínimas na anacruza e mínima na cabeça do tempo).

Exemplo 3


No exemplo 3, vemos que o Sib estrutural serve como suporte e impulso para atingir, via transferência de oitava, o Sib do c.28 que identificamos como climax da peça. O cromatismo do baixo tem uma função importante no acumulo de tensão desta passagem, que podemos destacar através de um crescendo e reter esse movimento no inicio do c.28, justamente quando o baixo realiza sua função dominante-tônica Re® Sol. A retenção deste movimento é reforçada também pela função da nota La (c.28), entre parêntese, que muda por um momento a direção ascendente da linha melódica, criando um intervalo de nona menor em relação ao Sib culminante, fato este que sugere uma força de impulsão maior, enfatizando ainda mais o ponto culminante da peça.

Exemplo 4


O exemplo 4 mostra-nos o procedimento de descida da linha melódica que avança até o Sol (c.36), seu ponto final de repouso. Após o climax, o Sol do baixo que é projetado até o Sol final da peça, caminha em direção a um pedal sobre Re (c.30-31). Esses compassos servem como eixo de saída da região do III grau para o retorno à região da tônica. Para nós intérpretes, é de especial interesse o pedal sobre Re que podemos manejar como elemento de contenção da energia produzida pelo climax, ao qual nos referimos anteriormente. No compasso 34, o Sib da linha melódica e novamente o Re do baixo (c.34), que anunciam o grupo de colcheias da cadencial final, requerem um caracter conclusivo que podemos expressar através de um poco rallentando.

 

Conclusão

Através do processo de redução podemos adquirir um grau maior de consciência, que nos permita controlar o direcionamento das linhas envolvidas. Assim, podemos evitar desconexão das partes dando à interpretação a possibilidade de recriar a unidade da peça. Acreditamos que a obra musical é uma espécie de organismo vivo, adaptável às diversas circunstâncias durante a performance musical. Por isso, entendemos que as decisões que tomamos durante a análise musical, longe de servir como ato de mumificação da peça em questão, devem ser um roteiro, sujeitas a eventuais modificações que dependem de fatores como: condições acústicas da sala, características do instrumento e circunstâncias da performance.


Bibliografia

Cook, Nicholas. A guide to Musical Analysis. London: J. M. Dent & Sons ltd., 1987.

Bent, Ian D. "Analysis". In The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Stanley Sadie, ed. London: Macmillan, 1980. V.I. Pp. 340-388.

Forte, Allen. "Schenker's Conception of Musical Structure". In Readings in Schenker Analysis and other Approaches. Ed. por Maury Yeston. New Haven, Mass: Yale University Press. 1977, pp. 3-37.