Bach: Prelúdio e Fuga No.8 do Primeiro Volume do Cravo Bem Temperado
Elizabeth Rangel Pinheiro
A adoção do temperamento igual para afinar instrumentos de teclado ocorreu ao tempo de Johann Sebastian Bach (1685-1750). A comunicação mais fácil entre as tonalidades trazida pelo novo sistema pode ter influenciado o compositor a publicar, em 1722, o primeiro volume do Cravo Bem Temperado, no qual vinte e quatro pares de prelúdios e fugas são organizados de forma a representar cada altura da oitava por um par em maior e um par em menor.
Um aspecto peculiar envolve o par em menor que aparece como No.8 nessa coleção - o Prelúdio é em Mi bemol e a Fuga em Ré sustenido. Esse aspecto permite conjecturar tanto sobre a intenção do compositor de exemplificar as propriedades enarmônicas do sistema tonal, como a possibilidade de diferentes datas de composição para as duas peças. Em verdade, o Prelúdio pertence a Das Clavier-Büchlein, uma coleção de obras compiladas por Bach em torno de 1720, para seu filho Whilhelm Friedman. Concebidas ao mesmo tempo, ou não, as peças em Mi bemol menor e Ré sustenido menor apresentam feituras suficientes para justificar o pareamento. Uma delas é o balanceado comprimento dos cinco segmentos que elas contêm, como o gráfico na Figura 1 mostra.1Os segmentos da Fuga no gráfico correspondem às três versões do sujeito - original, invertido e aumentado - que começam, respectivamente, nos comp.[1, 30 e 62]. No Prelúdio, a mudança de textura e a natureza incisiva do stretto que começa no comp.[20] bastariam para justificar a divisão em dois segmentos. É, no entanto, um aspecto da organização tonal que sugere tal divisão. Tonicizado por uma cadência forte (V-i com ambos os acordes em posição fundamental) na cabeça do comp.[20], Lá bemol se torna a sétima de uma pilha de terças sobre a dominante - Sib, Ré, Fá, Láb, Dób. A ênfase dada aqui à relação entre a dominante e a sua sétima reflete a importância da mesma relação dentro do sujeito da Fuga, onde as alturas Lá sustenido e Sol sustenido (a dominante e sua sétima em Ré sustenido) são realçadas tanto pela síncope, como pelo impulso característico de saltos para cima.
É, em verdade, essa implicação harmônica do sujeito que esclarece a proeminência da subdominante dentro do plano tonal do No.8. No Prelúdio, Lá bemol menor, presente nos comp.[2, 8, 20, 23, 31 e 38], não apenas explica a divisão da peça em dois segmentos, como visto acima, mas também estabelece um paralelismo entre a introdução e a coda. A primeira movimentação da progressão harmônica para a sonoridade Lá bemol do comp.[2] cria o mesmo módulo i-iv-V-i que, sobre um pedal de tônica, aparece nos quatro últimos compassos da peça. A terminação picarda dada ao Prelúdio, embora tradicional para peças em menor, tem uma função conectiva no No.8. A qualidade maior do acorde de Mi bemol, por gerar uma certa expectativa pela subdominante, sutilmente anuncia sua proeminência na peça por vir.
A expectativa deixada no fim do Prelúdio é respondida na Fuga por um uso consistente de Sol sustenido. Enquanto em alguns lugares ele aparece como evento de passagem, em outros ele assume funções harmônicas definidas. Nos comp.[33, 37, 38, 39, 61 e 84] ele resulta de linhas construídas sobre a escala melódica de Ré sustenido menor. Nos comp.[2, 4, 6, 9-11, 40-42, 44, 57-60, 76, 78 e 86] Sol sustenido aparece como quarto grau ou como a sétima da dominante. Nos comp.[14-15, 29 e 53], atua como segundo grau de progressões ii-V-I em Fá sustenido maior, o relativo da tonalidade central da peça. Nos comp.[25-27], Sol sustenido assume a função de dominante-da-dominante preparando a chegada de Fá sustenido maior no comp.[30]. Todavia, é na função de tônica nas áreas em Sol sustenido menor dos comp.[35-36, 47-50, 63-67 e 72-75] que sua importância é confirmada.
Destinada a demonstrar o proeminente uso do quarto grau, a descrição acima não é, porém, uma boa abordagem para a linearidade que prevalece em escrita contrapontística. Em relação a sujeitos fugais, dispostos em áreas tonais usualmente comprometidas com um plano particular de apresentações, torna-se difícil algumas vezes definir a função de uma específica sonoridade. Um exemplo é oferecido pelo evento em aumentação dos comp.[67-72]. A linha do sujeito em valores longos é decididamente em Fá sustenido maior. Os contrapontos a ela, do comp.[67] ao comp.[69], são igualmente em Fá sustenido maior. No entanto, do comp.[69] ao comp.[72], enquanto a linha superior tem um inflexão de Si maior, a linha inferior dirige-se a Sol sustenido menor. Assim, asserções acerca de áreas tonais na Fuga podem levar a concepções erradas. Igualmente perigoso pode ser o uso de símbolos analíticos, desde que eles são incapazes de explicar como certas sonoridades atuam dentro do todo da estrutura. No No.8, mais importante do que definir a função local é observar como os eventos baseados em duas específicas alturas, por ligarem o Prelúdio à Fuga, definem as proporções do todo. Uma de tais alturas é Lá b/Sol#. Ela não só relaciona o todo ao sujeito da Fuga como visto acima, mas também serve para demarcar o meio do Prelúdio. A outra altura é Solb/Fá#. Ao mesmo tempo que ela é tomada no comp.[5] do Prelúdio para apresentar o primeiro contraste à progressão i-iv-V-i dos compassos iniciais, ela é usada para anunciar o enarmônico Fá sustenido maior que, na Fuga, demarca:
1) o meio do No.8, através do movimento evasivo da progressão harmônica no comp.[14],
2) a seção áurea do No.8,2através da inversão do sujeito no comp.[30], e
3) a seção áurea da Fuga que, realçada por um stretto a três partes, subitamente apresenta
no comp.[54] uma troca da versão original do sujeito pela invertida.
Aspectos relacionados a fraseio, ritmo, metro e proporções precisam agora ser considerados. Também aqui, o sujeito da Fuga oferece o melhor ponto de partida porque, enfatizada por um salto para cima, a síncope sobre a nota Lá sustenido do motivo inicial assinala o começo de um sistema ternário de fraseio que prevalece ao longo da peça. Nove mínimas separam aquela síncope da cadência que toniciza o quinto grau de Ré sustenido na cabeça do comp.[6]. Nove mínimas são também gastas do comp.[6] ao retorno da tônica no terceiro tempo do comp.[10]. Esse módulo torna-se um elemento de propulsão, desde que passa a ser progressivamente expandido depois do comp.[10]. Do terceiro tempo deste compasso ao terceiro tempo do comp.[19], a frase contém dezoito mínimas. A expansão dessa frase é devida a um evento no comp.[14]. Ao invés de permitir que a cadência em Lá sustenido sugerida pelo sujeito se realize, Bach muda o curso da progressão harmônica através de uma cadência evasiva que sutilmente anuncia o Fá sustenido maior do comp.[30]. A movimentação rumo ao comp.[30], realçada pela energia do stretto que começa no comp.[19] e expandida pelos três tempos de confirmação cadencial dos comp.[28-29], vem a conter vinte e uma mínimas. A sobreposição do fim do primeiro segmento e início do segundo na cabeça do comp.[30] provê a continuidade esperada em uma fuga.
A versão invertida do sujeito predomina ao longo das sessenta e três mínimas do segmento central - do comp.[30] ao terceiro tempo do comp.[61]. Correspondendo, portanto, a vinte e uma vezes o módulo básico de três mínimas, esse segmento contém um gesto ininterrupto de crescente energia. Cadências confirmativas, como a dos comp.[28-30], não ocorrem, e grande ímpeto é adicionado à movimentação pelo stretto a três partes que começa no comp.[52]. Um evento especial tem lugar dentro desse stretto. Nos comp.[52-53], a porção inicial do sujeito original, como configurada no comp.[3], reaparece, para ser repentinamente substituída no comp.[54] pela versão invertida do sujeito. Para esta versão invertida, ao invés de usar a quarta descendente de tônica-para-dominante como no comp.[30], Bach usa o caráter mais incisivo do intervalo de quinta descendente de dominante-para-tônica. Assim, ele devota a Fá sustenido maior o mesmo gesto devotado a Ré sustenido menor na voz inferior do comp.[44]. O que é importante observar é que a quinta descendente a Ré sustenido demarca o meio da Fuga, enquanto a quinta descendente a Fá sustenido demarca sua seção áurea.
A crescente atividade do segmento central da Fuga não é inconseqüente. Ele prepara a chegada do sujeito em aumentação no comp.[62]. Rodeados por versões originais e invertidas do sujeito (variadas em alguns casos), três eventos em aumentação constituem o último segmento da Fuga. Embora o módulo de três mínimas se torne um tanto alterado por sobreposiçõees, pelas pontes que conectam as diferentes áreas tonais sobre as quais as aumentações são dispostas, bem como pela elaboração da coda, em performance, ainda é o sentido de um impulso ternário interagindo com o metro binário que dá à música um fluir flexível e contínuo. Ligeiramente mais curto do que os dois segmentos anteriores, o terceiro atua como um expandido e grandioso gesto cadencial para o todo do No.8.
É necessário observar a textura e o uso de registros na Fuga. O material que constitui o tecido contrapontístico deriva-se em grande parte do sujeito. A linha em graus conjuntos emoldurada por uma quinta - Lá#, Sol#, Fá#, Mi#, Ré#, que atua como a espinha dorsal do sujeito, gera não só o contraponto a ele, como nos comp.[3-4], mas também a maioria das linhas que preenchem a textura, como as duas partes superiores dos comp.[7-10] ilustram. A figuração pontuada que aparece na parte interna no comp.[24], e acompanha a aumentação no comp.[77], nada mais é do que uma variação do sujeito. Essa homogeneidade de matéria prima cria, por sua vez, uma homogênea base sonora para as principais entradas do sujeito. Este porém, ao invés de ser repetitivo (como sujeitos são usualmente considerados), recebe a cada aparição um tratamento distinto. Bach explora, por exemplo, a diferenciação de caráter que existe entre intervalos ascendentes e descendentes. Basta comparar a quinta ascendente do comp.[1] à quinta descendente do comp.[44]. Valores rítmicos, posicionamento métrico e áreas tonais estão também entre os elementos que Bach explora para tornar distinta cada entrada do sujeito. É, no entanto, de registro que ele mais se serve. Um bom exemplo é a maneira como ele reserva a última aumentação, no comp.[77], para o registro do topo da textura. Dessas observações decorre o entendimento de que a peça, embora escrita em três partes, contém seis vozes. Bach emprega aqui uma técnica semelhante à que cria polifonia em sua música solo para violino ou violoncelo. A Figura 2a) mostra como Bach distribui as vozes nos diferentes registros do teclado, e a Figure 2b) relata as vozes que correspondem às principais apresentações do sujeito.Fig. 2 |
O tratamento dado a textura reforça o que tem sido dito sobre proporções. A apresentação exclusiva do sujeito pelo baixo no meio da peça, no comp.[44], é cuidadosamente preparada. Nas duas mínimas precedentes, Bach rarefaz a textura, tanto por excluir a parte inferior, como por permanecer no registro médio do teclado. Para a seção áurea, no comp[54], a textura é também envolvida, pois aqui ele explora a densidade do stretto a três partes. No Prelúdio, enquanto o meio da peça é sinalizado pelo contraste trazido pelo stretto no comp.[20], a seção áurea é posta em evidência, no comp.[26], não apenas pela surpresa do Fá bemol maior napolitano, mas também pelo constraste que a textura do arpejo completo cria em relação ao gesto melódico do compasso anterior.
Os comentários sobre proporções têm sido em sua maioria voltados à estrutura de cada peça. Em relação à estrutura toda do No.8, o repentino aparecimento de Fá sustenido maior no comp.[14] da Fuga coincide com o meio, enquanto a entrada do sujeito invertido em Fá sustenido maior no comp.[30] coincide com a seção áurea
.Elizabeth Rangel Pinheiro
Professora Visitante na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (Salvador)
Professora Aposentada da Universidade Estadual de Campinas (SP)
Doctor of Musical Arts (Piano Performance) pela Boston University
(EUA) Master in Music Theory pela Indiana University - Bloomington (EUA)
NOTAS
1A duração das peças é representada no gráfico pela linha horizontal. Os cálculos, tomando a mínima como pulso comum, foram baseados no seguinte. Um segundo (metrônomo a 60) seria representado por 1.000 milímetro em escala 1/1. Por adotar o metrônomo a 30 em escala 1/4, a mínima é representada por 0.500 milímetro. (De acordo com a vontade do executante, um tempo mais rápido ou mais lento pode ser usado, contanto que a relação de pulso entre as duas peças seja mantida.) [Volta]
2A explicação de "seção áurea" que se segue, foi extraída do rodapé à p.12 de: Elizabeth Rangel Pinheiro de Souza, Proporções no Opus 110 de Beethoven (Campinas: Editora da UNICAMP, 1995). Em Debussy in Proportion: A Musical Analysis (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), p.2, Roy Howat oferece a seguinte definição: "Seção áurea é a maneira de dividir um dado comprimento em dois de modo que a razão da porção mais curta em relação à mais longa iguale a razão da porção mais longa em relação ao comprimento total". A seção áurea pode ser encontrada ao multiplicar-se um dado comprimento por 0.618. Também chamado de "proporção divina" devido à sua presença nas medidas do corpo humano, das flores, etc. esse princípio geométrico conhecido pelos gregos no período clássico pré-cristão tem sido desde então aplicado às diferentes manifestações das artes plásticas; em arquitetura, o Parthenon na Acrópole de Atenas é apontado como um exemplo (informações extraídas do artigo "Golden Section" de Karl Meninger no vol.X da Encyclopedia Britannica (Chicago: William Benton, 1971)), p.542. Sua aplicação em música tem cada vez mais ocupado a atenção de teóricos voltados à organização do tempo musical. Na defesa de suas idéias quanto a um intencional uso de proporções por Claude Debussy (1862-1918), Howat aponta o estreito contato do compositor com arquitetos do seu tempo como uma possível influência. No caso de Béla Bártok (1881-1945), testemunho é oferecido por seu aluno Erno Lendvai em Béla Bártok, An Analysis of His Music (London: Kahn and Averill, 1971). Sua aplicação na obra de Johannes Brahms (1833-1897) é discutida por David Epstein em Beyond Orpheus (Cambridge, MA: MIT Press, 1979), e a obra de diversos compositores é observada do mesmo ângulo por Jonathan Kramer em The Time of Music (New York: Schirmer, 1988). Quanto a compositores do período barroco (final do século XVI a meados do século XVIII), estudos específicos sobre o assunto aparentemente inexistem. Em seu livro (publicado em 1739) Der volkommene Capellmeister (tradução inglesa de E. C. Harris em Studies in Musicology XXI, Ann Arbor, 1981), Johannes Mattheson (1681-1764) comenta a prática dos compositores de modelar suas grandes estruturas nas diretrizes da retórica. Segundo essas diretrizes, o discurso segue uma ordem na qual a idéia, após ser apresentada e desenvolvida, atinge a um certo ponto o clímax da argumentação, vindo então a ser concluída; isto explica de uma maneira geral a balanceada distribuição dos segmentos em composição musical, sendo que ao clímax em retórica corresponderia o que vem sendo apontado como seção áurea por analistas musicais. Isto não explica, todavia, a precisão de medidas que se observa em muitas obras do período; no meu entender, entre os compositores barrocos, o uso de princípios matemáticos deve ter sido consciente; na música de Johann Sebastian Bach (1685-1750), por exemplo, as medidas são tão precisas, que impossível se torna acreditar terem sido casuais. Levando em consideração que esse foi um período de profundo pensar matemático, não seria de se admirar que compositores tivessem adotado sistemas propícios à organização de estruturas proporcionalmente balanceadas. Particularmente compreensível isso se torna no caso de Bach, já que seu envolvimento com medições acústicas para afinação de órgãos é amplamente conhecido. [Volta]