Escuta, Elvira; acorda Teresa, Adalgisa, acorda, vem depressa, Maria! Os jograis da madrugada, de formação erudita ou popular, anônimos ou gloriosos, entoam canções de infinita melancolia que são outros tantos hinos esbraseados de paixão
Drummond, Elvira, escuta
Notas para um Sarau de Modinhas Brasileiras
Manuel Veiga
Estas notas, quase um memorial, foram escritas em torno de um programa sobre a canção brasileira. A intenção não era tanto de que fossem lidas durante a execução mas que, no sossego de casa, ao sabor das lembranças, fossem revisitadas e repensadas. Vale, portanto, a advertência de que são propositadamente minuciosas e de que, em termos de abrangência, vão além dos meros comentários sobre as peças executadas. Ele próprio, o programa, foi concebido como uma ilustração do que pode ser "nossa música", música que reflita a identidade cultural do brasileiro. Neste caso, trata da canção urbana: mais particularmente a voltada para o eterno tema do amor. Em dois casos, apenas, esse tema varia: num deles o amor é à criança; num outro, se a feitura é urbana, a intenção é rural.
Mais especificamente, este programa sobre a canção brasileira é predominantemente sobre um dos seus segmentos históricos, a modinha, aquele que tratando do amor em seus termos mais líricos e sentimentais, abrasileirou-se e popularizou-se fortemente, a despeito de seus exageros, de seus desvios em certa fase de sua evolução, de suas remotas origens eruditas, influências italianas e francesas, e até de alguns traços bem-vindos de derivação africana já aparecendo no final do século 18. Juntamente com o lundu, seu parceiro nas questões amorosas este pelo lado mais brejeiro e até safado ambos são básicos para a música brasileira, cruzando as linhas artificiais entre o popular e o erudito.
O termo "modinha" aparece em Portugal no último quarto do século 18, talvez diminutivo de "moda" ou derivado de "mote". No primeiro caso, a "moda" seria a canção típica do folclore português, mas também uma designação mais genérica para cantigas desse século, freqüentemente a duas vozes com acompanhamento de cravo; "mote", na segunda hipótese, com o sentido de um conceito expresso num dístico ou numa quadra, para ser glosado, comentado, como ocorre em muitos textos de modinhas. Associada a um padre mulato carioca vivendo na corte em Lisboa, Domingos Caldas Barbosa (c. 1740-1800), a modinha quando passa a ser mencionada como termo (ele próprio só o menciona uma vez), desperta comentários indignados.1 Esse "trovador de Vênus e Cupido", cujo nome arcádico era Lereno Selinuntino, foi considerado prejudicial à educação de jovens, encantados com os venenosos filtros da sensualidade, da meiguice do Brasil, e da suposta moleza americana. O erudito doutor Antônio Ribeiro dos Santos, um desses críticos, esquecendo-se do tempo em que vivera no Brasil, queixava-se (1793?):
só se ouvem cantigas amorosas de suspiros, de requebros, de namoros refinados, de garridice. Isto é com que embalam as crianças; o que ensinam aos meninos; e o que cantam os moços e o que trazem na boca donas e donzelas. Que grandes máximas de modéstia e temperança, e de virtude aprendem nestas canções. Esta praga é hoje geral, depois que o Caldas começou de por em uso os seus romances e de versejar para as mulheres.
Não é tanto que o Lereno tenha inventado a modinha e o lundu, mas que certamente teve um papel notável entre seus iniciadores e em sua difusão, aliás num período que imediatamente precedia aquele em que essa doçura gradativamente se generalizaria na Europa com os precursores do Romantismo.
A onda das modinhas (um vagalhão, diz Mário de Andrade) começou a ceder com o advento da iluminação a gaz, em meados do século 19, mas ainda resistiria até a segunda década do século seguinte, alcançando os primeiros discos da Casa Edison e se revigorando com eles. Ainda hoje surge esporadicamente, como se vê pelos exemplos recentes apresentados neste Sarau.
Não é fácil dizer o que a modinha seja, uma vez que em seus quase dois séculos de existência passou por fases distintas. Em Portugal, foi praticamente esquecida e, ao contrário do Brasil, não parece ter deixado marcas profundas na musicalidade portuguesa. Um dicionarista provinciano, Isaac Newton (sic), de Alagoas, publicando em seu Dicccionario Musical (1904) um pequeno verbete sobre a modinha, disse:
Modinha. Diminutivo de Cantiga [de moda?]. Poesia lírica posta em música; pequenas composições que andam em voga, e que qualquer curioso as pode criar e compor.
Por esse tempo, a modinha, no caso, modinha de rua, já se popularizara a tal ponto que isso ocorria, havendo porém exemplos em que prováveis sabichões parodiavam maliciosamente a música e o texto populares, ora como uma coleção de chavões e disparates em que até o cacófatons não faltavam. Sobre a melodia da tradicional "Se essa rua fosse minha", cantava-se o seguinte estribilho e daí para pior:2
Se avéra entonce de ser só minha
Essa fada do sonho só meu,
Uma rosa, uma rosa fresca à galha
Como a estrela, como a estrela presa no céu...
No seu curso, a modinha andou pelos salões, pelos teatros e pelas ruas, adquirindo características distintas. As teatrais, sob influência da aria italiana, chegam em meados dos século 19 a considerável porte e rebuscamento. A Norma de Bellini, introduzida no Rio de Janeiro em 1844, certamente influiu nessa história.
Eventualmente, extremos de morbidez atingem a modinha em alguns casos, a exemplo da que adotou como texto o fúnebre "Noivado do Sepulcro" do ultra-romântico e tísico poeta português Antônio Augusto Soares de Passos (1826-1860). Caracterizava-se aí um tipo de canção cujo resgate é ainda difícil para nossos contemporâneos, principalmente os mais jovens. Antes, depois e a despeito disso, porém, verdadeiras jóias da canção brasileira foram criadas, dignas de serem apresentadas em qualquer lugar, inclusive aqui.
Essa morbidez certamente teve seguidores no Brasil e na Bahia, mais pela influência italiana do que da francesa e jamais da africana. Um desses casos é O Sonho do Bardo, Modinha Brazileira Melo-dramática para Canto Com acompanhamento de piano, Op. 120, de Francisco [Francesco?] Santini, poesia de M.C.V. (Salvador: Lithografia de M. J. da [sic] Araujo, s.d.). Muito admirada que foi, cantava-a Chico Sepúlveda, "velho trovador", até numa festiva Segunda-feira do Bomfim, como lembra Antônio Vianna3. Mesmo nesse caso, não é tanto a música do italiano radicado na Bahia, mas principalmente o poema que a torna um intolerável dramalhão, ainda que a música lhe sirva de coadjuvante. Sonha o poeta com a mulher adorada, deitado num banco de pedra de um jardim. O poema, de cunho narrativo, mantém uma atmosfera sombria, não deixando claro se a amada é morta ou apenas indiferente aos ardores do poeta. Em sonhos, este a vê baixando do céu numa nuvem brilhante, vestida de branco, cabelos esparsos ao vento contidos por uma mimosa capela. Mais linda que nunca, a visão o delicia, ainda mais com o abraço e beijo recebidos. Acorda furioso por encontrar-se sozinho, apenas com a "lira" a seu lado. Soluçando, maldiz sua sorte: foi um sonho, foi tudo mentira, preferiria sempre dormir, sempre sonhar. O assunto é liquidado com o seguinte horror:
Ao partir furioso se erguendo,
A seus pés sua lira quebrou;
E no dia seguinte na praia,
O cadáver do vate se achou."
Seria talvez o caso, para salvar a música, devolver o texto ao italiano, ou melhor ainda, traduzi-lo para uma língua que ninguém entendesse. O próprio caráter narrativo do poema já não é próprio de nossa modinha, necessitando talvez por isto mesmo da ênfase dada a esse desvio pelo subtítulo de "modinha brazileira". Trata-se, na verdade, de uma aria operática italiana mascarada e empurrada por um texto em português.
A ópera italiana foi uma presença avassalante na Europa inteira, raros países, como a França, reagindo suficientemente para a manutenção de seus tipos nacionais, e ainda assim em meio a debates e querelas. Sua presença esporádica na Bahia já tinha precedentes desde o século 18. Viria aliás por outros canais, inclusive o da música religiosa. Dispondo do Teatro São João, construído entre 1807 e 1812, e já não sendo este o primeiro teatro em que se fez ópera em Salvador, como o Guadalupe o precedendo (daí em diante designado como Ópera Velha), as temporadas líricas de companhias italianas tornaram-se rotina, a partir de 1845.
Dificuldades enormes, porém, tinham de ser enfrentadas, que iam desde a falta de recursos técnicos e financeiros até as epidemias como a de febre amarela dizimando também os artistas estrangeiros, talvez até mais susceptíveis. Provavelmente já improvisados de origem, alguns desses elencos aqui se dissolviam deixando como resultado vários professores italianos de canto, violino ou piano,4 que aqui se fixaram e trabalharam. A florentina Agnese Trinci Murri, derradeira musa de Castro Alves, foi um desses casos.
Entre os impasses mais óbvios, estava o de compreensão dos libretos em italiano. Um A. Ronzi, sobrenome italiano, será talvez o Ambrosio [Ambrogio?] Ronzi mencionado por Manuel Querino que, em 16 de abril daquele ano de 1845, "apresentava a idéia da criação de uma escola de declamação", pouco posterior à proposta "dada à estampa [d]os estatutos para formação de uma academia de música, em 1831, pelo professor João Honorato Francisco Régis.5 Ronzi foi administrador do Teatro São João em 1842, mesmo ano em que Francisco Moniz Barreto também o fora.6 Em nosso relato, Ronzi entra numa dupla capacidade: como tradutor de libreto de ópera e também como autor mal sucedido de prosa de ficção endereçada às senhoras baianas; ainda assim um pioneiro. Do primeiro papel, Pierre Verger7 nos transmite um relato bastante eloqüente tirado de José Francisco da Silva Lima, A Bahia de há 66 anos [(Salvador: 1908), p. 101]. Tendo-se referido a espetáculos de melhor qualidade apresentados no Teatro São João por um grupo lírico italiano (certamente o de Clemente e Adelaide Tassini Mugnai, em 1845), Verger transcreve o seguinte:
Esta grande novidade na Bahia fez com que a sala ficasse repleta quando da primeira representação. A ópera bem cantada foi ouvida em silêncio religioso mas com raros aplausos dos especialistas ("connaisseurs"). Alguns declaravam à saída: "Eu não voltarei mais, não compreendi uma só palavra do que eles cantavam". A afluência dos espectadores tornou-se mais e mais reduzida até que certo Ronzi fez a tradução da ópera representada, italiano de um lado e português do outro. Estas brochuras eram vendidas na entrada com um tal sucesso que durante a representação, a platéia mais parecia uma escola primária.
No acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, um número substancial desses livrinhos sugere um problema semelhante, no âmbito mais sofisticado da Corte. Problema aliás que, em parte, poria por terra as boas intenções da pomposa Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, no Rio de Janeiro, entre 1857 e 1864. Criados os libretos em português e se possível sobre assunto brasileiro, necessitariam ser traduzidos para o italiano para serem cantados, o italiano funcionando como uma espécie de língua franca para um elenco diversificado de cantores, em sua maioria estrangeiros que desconheciam o português.8
Quanto à segunda capacidade, de escritor, embora duvidando se A. Ronzi seria nome verdadeiro ou pseudônimo de algum colaborador do jornal O Crepúsculo, David Salles dele desenterra um romance dos folhetins. Por ter desagradado, porém, ficou inconcluso o "Cena da vida baiana: as minhas amáveis vizinhas quando eu morava na rua...".
Interessam-nos os efeitos dos folhetins e revistas sobre a formação do gosto musical, particularmente das mulheres, um estudo que ainda não foi feito para a Bahia. Entretanto, foram publicados na antiga capital até suplementos e periódicos específicos de música, de duração mais ou menos efêmera, mas que precisam ser localizados e estudados. Necessariamente material subsidiário acompanhava jornais baianos, como ainda grandes jornais de hoje, com a tecnologia disponível, publicam não apenas suplementos literários e livros, como também videocassetes e CDs, entre outras itens de interesse de seus leitores.
Em seu estudo dos iniciadores ou precursores da ficção na Bahia, David Salles nos dá uma informação que talvez possa ser estendida à poesia lírica e ao gosto pelas modinhas. Retira-a de A Época Literária, "Periódico scientifico, litterario. historico, e de bellas artes, redigido por uma sociedade e debaixo dos auspícios do Exmo. sr. visconde de Pedra Branca". Estamos em 1850:9
Hoje em dia nenhum jornal satisfaz as exigências do nosso público, ¾ sendo político, sem ter o seu rodapé, a que chamam folhetim, ¾ sendo literário, sem ter a sua revista, e quanto mais sediciosas ... ¾ literariamente falando ¾ melhor: é moda. E não é só moda, convimos nisso: ¾ cada assinante tem, termo médio, mulher, duas filhas, três parentas & e todas as suas amigas, vizinhas e tal. Ora, sendo a maioria das senhoras pouco dadas às políticas, ciências, belas letras e arte, de que mormente rezam os jornais destes dous gêneros, porém sim, muito afeiçoadas à literatura amena e choradeira, julgam-se privadas do legítimo usufruto da assinatura, não vindo o literário adubo, que consiste nos romances de folhetim, nas revistas, crônicas, álbuns, que para suas excelências principalmente se escrevem.
É possível que a modinha da época possa ter preenchido uma função semelhante. A sentimentalidade, mesmo sem exagero, parece ser um de seus traços constantes. Carlos Drummond de Andrade faz uma síntese admirável do espírito da modinha que soube destilar como ninguém. Sua "Elvira, escuta"10, publicada no Jornal do Brasil [Rio de Janeiro] (14 out. 1976): Caderno B, p. 5, condensa em apenas duas páginas não só o espírito, mas as imagens e o próprio vocabulário da modinha, pondo-os em irônico contraponto às agitações e realidade do Rio de Janeiro de 1976. Faz paráfrases de títulos e versos de modinhas famosas. Dialoga com os personagens femininos tão ao gosto do gênero, no século 19: as Elviras, Adalgisas, Eugênias e Marias (não esqueceria Castro Alves), as Emílias; nomes bem diferentes dos das Marílias, Márcias, Eulinas, do século anterior. Crônica, prosa de tal maneira poética, não se pode encontrar esse quase-poema no anterior volume de Poesia Completa e Prosa (publicado três anos antes, em 1973, pela Edilar). A despeito de sua natureza circunstancial, mereceria inclusão numa próxima edição.
Difícil também é descrever características técnicas específicas do gênero, uma delas sendo a tendência a alcançar a subdominante, no plano tonal, em vários casos. Formalmente também revelam uma variedade de esquemas, os mais tardios com incidência de um impropriamente chamado "stretto", aqui entendido como uma seção mais resolutiva, em compasso e tempo distintos, este último mais rápido, freqüente nas modinhas baianas. Métrica, modalidade, morfologia, entretanto, variam, sendo imprudente uma análise estilística que não esteja ancorada em repertórios numericamente significativos, inseridos em contextos apropriados, e devidamente datados.
Quanto à execução, o Jornal de Modinhas11 publicado em Lisboa por Pedro Anselmo Marchal e Francisco Domingos Milcent, entre 1792 e 1795, revela freqüentemente duas vozes, em intervalos paralelos de terças e sextas, acompanhadas por um baixo cifrado de que o cravo era parte. Logo os instrumentos de cordas dedilhadas, violas e violões entram em cena e, eventualmente, o inevitável piano. Este chega à Bahia em torno de 1810 e logo se vê conduzido aos engenhos do Recôncavo em canoa, assim como galgara as Serras do Mar e da Mantiqueira, em lombo de burro, para alcançar as cidades mineiras do ciclo da mineração do ouro e do diamante. Nas serestas a modinha, também partilhando dos choros, passou ao território dos sopros disponíveis, das flautas em particular. Em relação às práticas interpretativas e à busca da autenticidade nas execuções, muitas vezes preferiremos considerar as modinhas como parte de um organismo vivo. Dentro de limites, não as veremos engessadas numa ortodoxia histórica que não lhes é própria, mas em diálogo constante entre o presente e o passado. Isso é particularmente verdadeiro das modinhas que se transmitem por via oral. Serem tradicionais significa serem sempre atuais.
Sendo a tradição modinheira de difusão oral e escrita, o fenômeno das variantes é uma constante. Os compositores mais populares, talentosos músicos, muitas vezes não tinham qualquer domínio da notação musical, sendo musicalmente iletrados. Este é o caso do baiano Xisto Bahia (1841-1894), por exemplo, e do carioca Joaquim Manoel da Câmera, em torno de 1822. Dependiam de terceiros para o registro eventual de sua música, como ocorreu com trovadores nos cancioneiros medievais.
Os acompanhamentos, em geral, importantes pela realização das harmonias implícitas nas modinhas, ao contrário do que ocorre nos "lieder" eruditos, raramente acrescentam comentários musicais paralelos aos textos, exceto no que diz respeito ao movimento, à dinâmica, aos contracantos, e aos prelúdios, interlúdios e codas que podem ser utilizados no caso das estruturas estróficas. Escritos, eventualmente, por amadores, esses acompanhamentos são às vezes canhestros, adventícios, não constituindo parte essencial das modinhas, o que ainda se agrava pela intervenção de copistas nem sempre conhecedores de música. Naturalmente, alterá-los exige um bom grau de discriminação por parte do musicólogo e do músico, divididos que ficam entre um purismo fatal e uma liberalidade excessiva.
Em princípio, neste programa, estão sendo respeitados os acompanhamentos das modinhas publicadas, de compositores de escola, enquanto foram permitidas algumas interferências no caso dos acompanhamentos que nos chegaram através de manuscritos e até mesmo de impressos sem vínculo seguro com o compositor. Em três casos, Se os meus suspiros pudessem, Que sorte, que sina e Hei de amar-te até morrer, estão sendo utilizadas harmonizações de João Baptista Siqueira (n. 1906), profundo estudioso da modinha já falecido, pelo interesse artístico e caráter brasileiro que suas ambientações refletem.
Relações socialmente assimétricas entre poetas e compositores são freqüentes, no estudo da modinha. Do ponto de vista metodológico, às vezes, para se chegar ao músico é mais produtivo um enfoque sobre o poeta. Por exemplo: e mais fácil se indagar sobre Roberto Correia, da Academia de Letras da Bahia, do que sobre Bento Luís, operário e músico, quando se trata de Não posso mais, ó formosa, modinha que resultou de alguma forma de participação dos dois. Injusto que isso pareça, está aí porém uma prova de que status social mais exaltado e erudição não são fatores essenciais ao talento, apenas ajudam e disciplinam o seu fluxo. Em muitos casos, as convenções da época induzem ao cultivo do anonimato parcial ou total da autoria. Não raro, nas partituras impressas da metade do século passado, na Bahia, onde tal não ocorra, a iniciativa de publicá-las parece dos poetas, como deles partem as homenagens, enquanto os músicos se mantêm numa postura mais profissional
Ainda assim, em função da transmissão oral, os problemas de datação precisa e de remoção desse anonimato, inter-relacionados, são muitas vezes insuperáveis, mesmo após minucioso trabalho musicológico. Poetas famosos, de grande prestígio, como Castro Alves (1847-1871), geram com seus poemas líricos grande quantidade de modinhas, enquanto os músicos associados vão dos mais modestos, perdidos no esquecimento e na ausência de registros, aos notáveis da composição brasileira, em cujo caso as coisas se tornam mais fáceis. Os dois textos musicados de Castro Alves, neste programa, estão entre os de composição anônima, transmitida oralmente. Temos, porém, em função dos poemas e por serem de Castro Alves, pelo menos datas mínimas para a música, mesmo que não possamos precisar quando e por quem de fato foram compostas, a contar dessas datas. Os acompanhamentos das variantes executadas serão improvisados, nos dois casos.
Um outro poeta baiano já mencionado, cujo estudo permitiu a fixação de algumas datas e referenciais muito importantes, é Domingos Borges de Barros (1780-1855), Visconde de Pedra Branca. Isso é relevante, nesse caso, não só pelo resgate das peças, mas pela fixação de alguns marcos concretos num período, aproximadamente o do Primeiro Reinado (1822-1831), em que sabemos pouco sobre a música secular da Bahia. A impressão regular de música é tardia e ainda não existia nesse período até no Rio de Janeiro, como sede da Corte. Mesmo tendo como exceções as canções publicadas em obras de viajantes naturalistas, como o extraordinário Martius, ainda aqui surgem problemas bibliográficos de datação e de remoção do anonimato.
A dificuldade das identificações consiste fundamentalmente em confrontar-se uma ou mais fontes musicais12 em que o anonimato seja total ou parcial, com uma fonte literária promissora: nisso a grande questão. Ocorre, no caso de Borges de Barros, que os livros de poemas publicados em 1825 (em Paris) e em 1841 (no Rio de Janeiro), hoje raríssimos, o foram sob o pseudônimo de "um Bahiano". Nada havia a chamar a atenção sobre ele, mesmo que o poeta já se revelasse um dos precursores do romantismo. Todo o processo de comparação teve de esperar por um indício concreto do envolvimento de Borges de Barros com a criação de canções, o que ocorre a partir de meus próprios estudos e apenas a partir de 1984, não na ordem em que as quatro das cinco canções já identificadas se sucedem neste programa, mas praticamente ao reverso, uma vez que o Põe na virtude, a mais tardia, de tom moralista, continuou aparecendo em coletâneas de letras de modinhas e até em antologias adotadas em escolas do Rio Grande do Sul, já para o fim do século 19, rompendo com o pretendido anonimato.
Tendo Pedra Branca passado desapercebido dos musicólogos durante tanto tempo, instigado a princípio por uma solicitação de Cleofe Pearson de Matos (teria visto os versos "Põe na virtude/Filha querida" num álbum incompleto de modinhas da importante Biblioteca da Escola de Música da UFRJ), fui encontrá-los inicialmente na Cantora brazileira [sic], de c. 1878, ainda sem menção do poeta. Simultaneamente, Gehard Doderer lavrava um tento, publicando uma versão completa da canção, ainda que sem ter podido identificar o autor da música, o que consegui posteriormente. De resto, são quinze anos de trabalho, envolvendo arquivos e bibliotecas de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Paris, Madri e Lisboa, com precedência das essenciais pesquisas de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e de Mozart de Araújo, para outros casos de identificação, para os quais a localização dos manuscritos de Francisco Manoel da Câmera, levados a Paris por Sigismund Neukomm, seriam indispensáveis.
Homem de tendências avançadas, de "idéias francesas", defensor dos direitos da mulher e também precursor do abolicionismo, Borges de Barros, saindo de Coimbra e indo para Paris, dali teve de fugir em 1809, quando os tempos já eram outros sob o despotismo napoleônico e a sujeição de Portugal. Foge para New York (1810) e daí segue para Philadelphia (1811), para ser novamente preso ao chegar ao Brasil, nesse mesmo ano, provavelmente pelas mesmas idéias libertárias ou mesmo por suspeitas de que tivesse ligações com Napoleão. Deu prontamente provas convincentes do contrário, sendo posto em liberdade.
Tornado grande do reino, comendador, Barão, posteriormente Visconde de Pedra Branca, graças aos serviços prestados à coroa brasileira, não lhe conviria uma associação a assuntos frívolos, por mais atraído que se sentisse. Tanto ao Encarregado dos Negócios do Brasil na França (1824-1825), a cujo cargo estaria obter o reconhecimento da Independência do Brasil junto ao ministro Chateaubriand, quanto àquele que negociaria um segundo casamento para o incrivelmente mulherengo Imperador missão melindrosa que chegaria ao fim em 1829, com o enlace por procuração de D. Maria Amélia de Leuchtenberg e D. Pedro ao Visconde uma exposição desse tipo seria imprópria.
Triste salgueiro, é a modinha 15, nos manuscritos das modinhas de Joaquim Manoel da Câmera, em que consta apenas de uma estrofe. Esse mesmo sexteto (escandido em 4 + 2 versos) vem seguido de outros quatorze, na publicação mais antiga de Borges de Barros (1825: I, 124-8), todos tetrâmetros, com rimas no segundo, quarto e sexto versos, constituindo a "cançoneta" (este o subtítulo) Ao salgueiro chorão, datada de 1812.
Joaquim Manoel floresceu no Rio de Janeiro no início do século 19 e ainda vivia em torno de 1822. Era mulato, virtuose de cavaquinho, talentosíssimo, embora musicalmente iletrado, como já dissemos. Foi comparado ao grande violonista Sor, nos comentários que recebeu de Louis de Freycinet, tendo sido também mencionado por Adrien Balbi. Suas modinhas sobreviveram em Paris, graças ao interesse que despertaram em Sigismund Neukomm (1778-1858), pioneiro que foi da utilização de temas brasileiros na composição erudita. Discípulo de Haydn, músico da casa do príncipe de Talleyrand, eventualmente professor de música de Pedro I e de Francisco Manuel da Silva (autor do Hino Nacional brasileiro), Neukomm viveu no Rio de Janeiro de 1816 a 1821. Seduzido por essas modinhas, transcreveu-as e para elas compôs acompanhamentos para piano sensíveis e adequados, para publicação na Europa. Triste salgueiro, uma das vinte modinhas levadas por Neukomm, se situa entre 1812 e 1816, mais provavelmente; não mais do que 1821, em razão do período da estadia do compositor austríaco entre nós. Sem sua providencial iniciativa, apenas duas outras modinhas de Joaquim Manoel Brazileiro [sic], cantadas pela atriz portuguesa Claudina Rosa, no Teatro do Salitre, em Lisboa (por volta de 1801?), seriam conhecidas. Ora pertencentes à Biblioteca Nacional de Madri.
Vem cá, minha companheira é o primeiro verso de À flor saudade, escrito por Borges de Barros na Bahia, em 1814.13 Foi um poema famoso, no seu tempo, tendo sido glosado por vários poetas, entre os quais D. Leonor de Almeida, posteriormente Condessa de Oeyerhausen e ainda Marquesa de Alorna, cujo nome árcade era Alcipe, isto em 1823, antes da data de publicação das primeiras poesias de Borges de Barros. Identificamos duas versões musicais. Uma delas, de Joaquim Manoel, é a modinha 13 do MS 7699 que, de modo semelhante à modinha anterior, se deve situar entre 1814 e 1816, não mais tarde que 1821.
Uma outra versão de Vem cá, minha companheira, é de data provavelmente um pouco posterior à de Joaquim Manoel da Câmera. Mário de Andrade atribuiu-a a um outro carioca, Cândido Inácio da Silva (c. 1800-1838), também mulato e não menos talentoso que Joaquim Manoel, salvo que aluno do famoso Pe. José Maurício Nunes Garcia. Mário de Andrade baseia-se na existência de duas outras modinhas de Cândido Inácio, de autoria conhecida, numa publicação de A Lira Moderna, em que todas estão sem indicação de autores, inclusive a que aqui nos interessa. A versão publicada por Mário de Andrade baseia-se em três das dez quadras de Borges de Barros, a primeira, a terceira e a quinta, escapando a Andrade inteiramente a autoria do poema, ou até mesmo seu simples reconhecimento, uma vez que surge também em A cantora brazileira. Não há ainda como contestar a sugestão de Mário, nem como confirmá-la tampouco, permanecendo a questão em aberto.
Ainda do Visconde de Pedra Branca, Põe na virtude, é a já mencionada "Modinha Nº 2", incompleta, do álbum também incompleto da Biblioteca da Escola de Música da UFRJ. Conforme a fonte literária, o título desse poema aparecerá como A minha filha,14 Conselho paternal 15 ou simplesmente Conselho,16 neste caso com uma nota de importância decisiva para a identificação do compositor: "Posto em música, em Montmorency, por Massemino". A publicação de Gerard Doderer17 a apresenta com o subtítulo de "romance" um exemplo concreto do uso indiferenciado dos dois termos, "modinha" e "romance", para a mesma canção. O título aqui é O poder da virtude, com o adendo "Composta e offerecida a sua filha pelo Ill°. e Exmo Visconde da Pedra Branca. Posto em Musica por Mr Massimo. Imprensa de Musica de P. Laforge rua da Cadèa [sic] N° 89."
Constata-se, portanto, que no caso da edição utilizada por Doderer, a publicação é confirmadamente de Pierre Laforge, com a indicação do endereço à rua da Cadeia 89, posteriormente rua da Assembléia, o que corresponde, segundo o cuidadoso estudo de Mercedes Reis Pequeno, aos anos de 1837 a 1851.
Tendo o pioneiro da impressão regular de música, no Rio de Janeiro, trabalhado desde 1834 num outro endereço, à rua do Ouvidor 149, e levando em consideração o título de Visconde na edição revelada por Doderer, podemos por aí concluir que a edição da "Modinha Nro. 2" seria a mais antiga, entre 1834 e 1837, e a de Doderer mais recente, situada entre 1837 e 1851.
Fizemos, com a ajuda de obras de referência espanholas, a identificação do autor da música como sendo Frederico Massimino, professor de canto e pedagogo nascido em Turim, em 1775, radicado no Chile desde criança, que indo para Paris fundou, em 1816, a Escola Imperial de Música de Saint-Denis. Seus métodos novos e avançados de ensino de canto foram reunidos em sua obra Nouvelle méthode pour lenseignement de la musique (Paris, 1820).18
Para uma sugestão fundamentada quanto à data de composição, propriamente dita, temos um limite superior de 1841, em vista da nota a que já aludimos, e um limite inferior de 1824 (presença em Paris), a despeito da não inclusão do poema na coletânea ali publicada no ano seguinte. Temos aqui três fatores a considerar: a relação compositor/poeta, favorecendo as "janelas" de 1824-1825 e a de 1829, da presença de Borges de Barros, em Paris; a idade e circunstâncias de D. Luíza Margarida Portugal de Barros (1816-1891); e o próprio caráter da peça, em adição ao seu estilo. Mas também é possível o período imediatamente anterior ao do casamento de D. Luíza com Eugene de Barral, em 1837, anterior à vinda para o Brasil, do qual não estaria ausente o pai, conforme a própria correspondência da futura Condessa de Barral atesta.
D. Luíza Margarida viveria no Brasil de 1848 (1838?) a 1865.19 Tornar-se-ia eventualmente preceptora das filhas de D. Pedro II, com o qual manteria, ao que parece, um relacionamento discreto e platônico. Os zelosos mas amáveis conselhos paternos seriam desastrosos em data tardia, jamais seriam publicados, ainda mais abertamente, sem pseudônimo. O caráter alegre e gracioso da música sugere antes se não a infância ou a adolescência de Luíza, pelo menos sua juventude. Evidentemente, a amarga perda do primogênito, o pequeno Domingos, em 1825, interporia poemas sombrios como os de Os túmulos, publicados nesse mesmo ano, excluindo a primeira hipótese. Ficamos, conseqüentemente, com a faixa entre 1829 e 1837 como a mais provável e merecedora de pesquisas adicionais para estreitá-la, o que parece possível.
Se os meus suspiros pudessem, modinha famosa de tradição fluminense, espalhou-se oralmente por todo Brasil. Talvez tenha contribuído, como reforço, o fato de seu texto ter sido utilizado por Manuel Antônio de Almeida (1831-1891), no famoso romance, Memórias de um Sargento de Milícias, publicado em folhetins, entre 1852 e 1853. Cantada pelo personagem Vidinha, parte ativa de uma trama que se reporta à vida no Rio de Janeiro do começo do século 19, nos tempos do velho rei D. João VI, atribuí-la ao século 18, contudo, como o faz Baptista Sequeira, sem base documental alguma, pode ser exagerado. Esse mesmo texto produziu uma modinha totalmente distinta da que utilizamos, publicada pelo menos duas vezes, embora de forma não inteiramente idêntica. Uma dessas edições, provavelmente de Pierre Laforge, situaria o texto como já existente entre 1834 e 1851. Graças à edição republicada por Gerhard Doderer, o compositor da versão mais erudita fica identificado como Lino José Nunes (falecido em 1847?), contrabaixista da Capela Imperial, outro aluno do também modinheiro e bom compositor Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Lino, que começou sua vida profissional como professor de canto, em 1821, propondo-se ensinar a cantar "toda a qualidade de música, e demais cançonetas italianas e modinhas portuguesas, tudo com acompanhamento de viola",20 não compôs uma modinha com o potencial de popularizar-se, à vista dos artifícios de suas appoggiaturas, pequenos cromatismos, intercalações de pausas, saltos de sétima diminuta, ágeis vocalizes em colcheias e em ritmos pontuados de colcheias e fusas. Não, sem passar antes por uma rigorosa faxina, de que não se tem qualquer rastro. A versão tradicional fluminense que preferimos, esta sim, resultado de uma vigorosa tradição oral, é a que seria, ainda em 1905, capaz de espargir versos de seu estribilho entre as quadras de A roseira, modinha totalmente distinta, anotada por D. Elisa Teixeira Leal [Conde], na Bahia, em seu caderno pessoal de textos de modinhas.
O texto, segundo Batista Siqueira, já é comentado num artigo de um periódico feminino, o Correio das Modas, em 1839, aparentemente recolhido em 1837. Se associado à modinha tradicional ou à versão de Lino José Nunes, Siqueira não esclarece. Embora nos inclinemos para uma data mais antiga para a versão tradicional em apreço, pelo contexto histórico do romance (primeiras décadas do século), não temos como comprová-la.
Utilizamos a ambientação de Baptista Siqueira, mesmo julgando que o tipo de tratamento que dá aos seus acompanhamentos seja mais adequado estilisticamente a modinhas mais tardias, como ocorre com Que sorte, que sina, cantada por Xisto Bahia, provavelmente da segunda metade do século 19. É que a ambientação de Siqueira proporciona uma espécie de visão retrospectiva de características da modinha, latentes ou incorporadas nos Suspiros, em seu relativamente longo processo de transmissão oral. Siqueira explora os baixos cantantes e os contracantos tão a gosto da futura música popular brasileira, de tal modo que não se sente qualquer anacronismo, mas antes uma exploração de potencialidades já ali presentes.
Hei de amar-te até morrer é um outro item precioso da coleção que Mário de Andrade reuniu e estudou em suas Modinhas Imperiais. Sua tradição é baiana, atribuída ao já mencionado Francisco Moniz Barreto (1804-1868), mas há contestação de autoria. É possível que o texto seja do repentista baiano, já mencionado anteriormente como administrador do Teatro São João, e também exaltado partidário de cantoras de ópera que aqui aportavam em companhias de duração efêmera, como o já também referido caso de Adelaide Mugnai, a partir de 1845. Esses partidos, criados em torno de uma ou de outra das cantoras favoritas, constituíam uma parte ruidosa da exacerbada vida teatral da época. Em retorno, as divas italianas cantavam modinhas brasileiras, principalmente nas serate d'onore, realizadas em seu benefício financeiro. Já o autor da música poderia ter sido Francisco José Martins, mais uma vez um contrabaixista, ligado também à Capela Imperial, entre 1847 e 1864. Neste caso, em que o acompanhamento é perfeitamente adequado, faremos uma exceção em favor da intensidade artística ainda maior da ambientação de Batista Siqueira. O clima da modinha é romântico e popularesco, pertencendo talvez à segunda metade do século 19.
Saudades fugi de mim é de Domingos da Rocha Mussurunga, na verdade Domingos da Rocha Viana (1807-1856). Viana foi condecorado pela sua participação na Guerra da Independência. O nome Mussurunga resulta de ter sido ferido em combate nas proximidades do Engenho Mussurunga. Latinista, teórico e compositor, foi ocupante da cadeira pública de música, por concurso. A cadeira de música, criada na Bahia por iniciativa de D. João VI, em 1818, teve como seu primeiro ocupante José Joaquim de Souza Negrão, ao que tudo indica, um excelente contrapontista, de quem sobreviveram duas cantatas ainda pouco conhecidas, uma delas, "A Estrella do Brazil" e sua "Abertura", datando de 1816. Negrão faleceu em 1835. Envolvido na Sabinada, em 1837, Mussurunga foi destituído da cadeira que ocupara nesse mesmo ano, ora no Liceu Provincial. Foi preso, julgado, absolvido e eventualmente reintegrado na cadeira, em 1839. Escreveu compêndios de música; projetou a criação de um conservatório para Salvador, em 1846. Sua Artinha era ainda publicada em 1905, na Bahia. Entre as obras que sobreviveram, Saudades fugi de mim, "modinha bahiana" isso já agora passa a ser uma designação de tipo estruturalmente mais complexo, não necessariamente de procedência é de 1853.
Entre os poemas musicados de Castro Alves alguns, teste supremo da popularidade, chegaram a folclorizar-se. Sonho da Boêmia, também chamado Dama Negra, é o mesmo Vamos, meu anjo, fugindo, que aparece na versão musical como Vamos Eugênia fugindo. Nome, aliás, é o que não falta, vez que o poema foi publicado em Poesias, em 1913, com o título de Sonho, sem data. Consta das Obras Completas entre as "Poesias Coligidas", com indicação do local e data como sendo Recife, 1866 (p. 429). O poema se refere a Eugênia Câmara (Dama Negra) e à intenção de se refugiarem numa casinha do Barro, arrabalde de Recife, onde também foi escrito o Gondoleiro do Amor. O autor da música é ignorado, constituindo 1866 uma data mínima para a composição.
Ainda de Castro Alves, Ó pálida madona, ou Pensamento de Amor, data da Bahia, de 1865. Está entre as "Poesias Coligidas", nas Obras Completas (p. 415). Recebeu títulos como Anseios (edição de 1882) e Devaneios (publicação de 1913). Inspira-se em Ester Amzalack, uma das belas irmãs judias que moravam em frente do Solar do Sodré. Ester, a predileta, teria sido também objeto de Hebréia, com as correspondentes versões musicais. Entre as possíveis hebréias, aliás, não faltou a própria Virgem Maria, numa melodia popular ouvida por Tobias Barreto em igreja do norte do Brasil. A música de Ó pálida madona, da qual existem variantes pelos quatro cantos do Brasil, anônimas, já aparece no Catálogo de gravações da Casa Edison, de 1914, sob o n° 40563, mas pode ser bem anterior, com a data assinalada de 1865 como limite mínimo.
Relacionados a Xisto Bahia, estão incluídos Que valem flores,21 poema do ator notável, sem data, música talvez também de sua autoria, e Que sorte, que sina modinha da qual sabemos apenas que Xisto a cantava.22 Totalmente distinta é a situação de Ainda e sempre, o Quis debalde varrer-te da memória, que utiliza um poema de Plínio de Lima (1847-1873), contemporâneo de Castro Alves também prematuramente desaparecido. Talvez seja a mais famosa modinha baiana, dedicando-lhe Guilherme de Melo, primeiro historiador da música brasileira, quatro páginas de elogios, em sua obra pioneira de 1908. Alcançou duas edições da Casa Leão (utilizamos a segunda), de Salvador, mas teve também o seu necessário percurso na tradição oral. Parece, em função disso, que nunca poderá ser cantada com anuência completa dos mais idosos cultores da modinha. Mantivemos o acompanhamento da citada edição da Casa Leão, com pequenas alterações, principalmente no sentido de tornar-lhe a textura um pouco mais transparente.
Viola quebrada, poema e música de Mário Raul de Andrade (1893-1945), é magistralmente harmonizada por Heitor Villa-Lobos (1887-1959), como também o fez Camargo Guarnieri. É parte das Canções típicas brasileiras (1919), de Villa-Lobos. Já dissemos anteriormente ser calcada na toada caipira, o correspondente rural da modinha, conforme a tese andradeana de nacionalização da música brasileira.
Cantiga de Nossa Senhora, também esteve implícita no comentário inicial destas notas. É a segunda exceção, no sentido de que o amor aqui é à criança, seja a que se embala para dormir, seja o Menino Jesus que não quer dormir, carregados um e outro nos versos de Luiz Peixoto e na música do compositor alagoano Hekel Tavares (1896-1969). O copyright é de 1940. Tecnicamente esse acalanto só seria modinha em sentido lato, pelo aspecto afetivo e pelo espírito da modinha aí presente.
Cláudio Santoro (1919-1989), amazonense, associado ao poeta Vinicius de Moraes (1913-1980), criou Acalanto da rosa em 1959, parte de uma série de doze canções sobre versos desse poeta, peças de grande lirismo, merecedoras de maior divulgação. A despeito das harmonias em quartas e das dissonâncias é tudo doçura, mais modinha do que no caso anterior.
Resumindo:
Parece termos aqui quatro agrupamentos de modinhas, quanto à questão da ordenação cronológica, ainda grosseira. Um quinto grupo, arcádico, aqui não representado, seria a dos primórdios, em torno de Caldas Barbosa. Levando em conta a incerteza de muitas datas e a maleabilidade das modinhas de tradição oral, que a rigor deveriam ser por isso excluídas, teríamos numa tentativa prematura e especulativa de classificação e sem definição estilística mais detalhada:
Um primeiro grupo, pré-romântico, razoavelmente situado entre 1810 e 1840, aproximadamente: Triste salgueiro, as duas versões de Vem cá, minha companheira, Põe na virtude e Se os meus suspiros pudessem;
2) Um meio de campo algo embolado, plenamente romântico, da segunda metade do século 19 à virada do mesmo, de crescente dramatização da modinha: Hei de amar-te, Saudades fugi de mim, Sonho da Boêmia, Ó pálida madona, Que valem flores, Que sorte, que sina, Ainda e sempre. Isso alcança os dramalhões mórbidos da decadência, aqui não incluídos, mesmo que em alguns casos a música seja bonita;
Um grupo deste século, modernista, não necessariamente nacionalista, de continuação esporádica: Viola quebrada, Cantiga de Nossa Senhora;
Uma modinha contemporânea, Acalanto da rosa, demonstrando a sobrevivência do gênero ainda em 1959.
Ao diluir-se, a modinha penetrou em tudo, até em música de igreja. Tornou-se uma de nossas músicas, a despeito de suas origens eruditas, influências da ópera italiana e do romance francês, temperos da mãe África, enfim do "maior mistifório de elementos desconexos" de que a acusa Mário de Andrade (1930), um de seus maiores estudiosos e apaixonados cultores.
Notas de Rodapé