NOSSA MÚSICA 1

Manuel Veiga

Minha música, sua música, "nossa música". Sempre música de alguém: música de gente para gente, música que faz coisas, que mexe com pessoas e multidões; música do outro a demandar respeito. Seria tudo isso simplesmente Música?

O que me proponho a fazer nestes próximos minutos é questionar o que significa para uma determinada pessoa ou grupo social, ter uma música.

Lembro-me de uma discussão que tivemos nos Seminários Internacionais de julho de 1954, origem de nossa atual Escola de Música, em que se debatia animadamente o fraseado do tema das variações da Sonata em Lá Maior de Mozart, K331, para teclado. Uns queriam que o fraseado fosse tético; outros, que fosse anacrústico, conforme uma teoria de Riemann que assim considerava toda frase, até mesmo a primeira de todas que, se começando em tempo forte, teria esta primeira nota considerada como a última nota de uma anacruse que não veio.

Perguntou-se a Sebastien Benda como fazia. Excelente pianista, mas homem pragmático, respondeu prontamente: "Eu toco simples!" Em suma: não tomava conhecimento do problema. Por incrível que pareça, isso para nós talvez fosse pedagogicamente bom. Num tempo em que tanto tínhamos a aprender em nível básico, éramos confrontados com teorias e posturas as mais radicais. Naquela metade deste século XX (1954) a contenda para a música do futuro parecia ser entre dodecafonismo e neoclassicismo, e ecletismo não estava à vista. Tomávamos nossos exemplos nos extremos de um e de outro. Devo ao Benda o aperto de muito parafuso frouxo que me andou pela cabeça.

No fim das contas, não foi esse radicalismo inicial que produziu o profícuo grupo de compositores da Bahia, mas o ecletismo de Ernst Widmer, associado às raízes baianas que Jamary Oliveira, Lindembergue Cardoso e Fernando Cerqueira, todos do interior, trouxeram com eles.

Mais recentemente, entretanto, um outro colega, chefe de departamento, pressuroso em prestar serviço, respondia-nos sistemàticamente, fosse o que lhe pedíssemos: "Não há problema!" Com isso nada se resolvia. Qualquer pesquisador sabe que sem problemas, não há soluções.

Mais pertinente à minha questão, cito um outro colega, uma musicista de extraordinário talento e muitas realizações. Perguntei-lhe por que ouvia e ouvia, dia após dia, as mesmas peças, quase obsessivamente. Respondeu-me: "Você sabe, eu gosto de música boa!" Mereci: fui provocar e levei uma pranchada na cabeça.

Sem dúvida. Todos gostamos de "música boa". Assim é com o virtuose de xilofone, numa aldeia particular do Moçambique, ou com um especialista em arco musical, no deserto de Kalahari, ou com pigmeus da África Central, cuja técnica vocal de intercalação de notas em falsete necessitou de computadores e processos de feedback em trabalho de campo para ser elucidada, ou com os executantes de bugaku na corte japonesa, ou ainda com os monges tibetanos produzindo sons diferenciais pela propositada e controlada emissão de notas com diferenças microtonais de afinação. Esses monges cultivam, aliás, uma produção vocal das mais graves cogitáveis, para esse efeito, enquanto simbólicos instrumentos, feitos de tíbias humanas ou de calotas cranianas unidas pelo ápice, revestidas de membranas, são tocadas. Estamos aí diante de um sistema musical para nós muito estranho, mas fundado em profundos conhecimentos de fisiologia da audição e de acústica (sons diferenciais), manejado com técnicas eficientes, e adequado aos fins e conceitos para os quais foi criado: música boa.

Talvez não haja tanta estranheza assim: nós próprios gostamos de friccionar cordas de tripa esticada, usando crina de cavalo para o arco. Ou ali mesmo, naquele piano, batucamos em cima de dentes de elefantes.

O problema é que há uma grande quantidade delas, músicas boas, para seus respectivos praticantes e que, graças aos meios de difusão, podemos até certo ponto conhecê-las. Está aí, como uma vitrina, a chamada "world music". Mas há barreiras etnocêntricas a serem vencidas e talvez uma existência inteira não chegue para aprofundar nosso conhecimento senão de duas ou três culturas musicais Tornamo-nos todos superficialmente multimusicais.

A idéia de que nossa música, entretanto, seja o centro do mundo, medida e referência para todas as outras, é também generalizada. Isso é, evidentemente, etnocentrismo. Reprovável, mas inevitável, mas que tem também seu lado útil, pois sem ele as tradições musicais se esvairiam.

Há porém culturas curiosas, como a cultura oficial brasileira, que pratica um etnocentrismo ao reverso, vez que não quer ser ela mesma e se deixa colonizar através das músicas dos outros. Em nosso caso, a música artística centro-européia é música boa, por pior que seja, enquanto a nossa música é música ruim, por melhor que seja. Até mesmo na música popular se busca legitimação no exterior, como se isso significasse alguma coisa. Essa legitimação deve existir, sim, mas no contexto em que essa música surge e para os usos e funções que tornaram necessária sua existência.

Colabora com isso uma tendência à sacralização da música, vista então como uma comunicação privilegiada, de ordem metafísica, doada de fora para dentro. A isso se opõe uma consideração da música em seus próprios termos, como uma mera sintaxe de sons eminentemente alterável. Não se trata, evidentemente, de separar a música do seu contexto, mas de ver como ela é concebida.

Ao contrário da crítica associada aos trabalhos acadêmicos, para estudantes sérios, durante minha vida profissional de executante me detive pouco em considerações a respeito da crítica dos meios de comunicação de massa. Preferia cuidar do pote eu mesmo, como oleiro, mais do que ter alguém a me dizer como fazê-lo. Hoje já me preocupo bem mais com isso, porque vejo que essa crítica é necessária,… em termos. Seriam escritos destinados à orientação do grande público, mas feitos por pessoas com o domínio técnico que isso exige, com a experiência ampla de repertórios e de execuções, com uma cultura musical profunda, com a mente aberta que lhes permita transcender a calha limitada em que transitam, capazes portanto de respeitar música - a do outro e particularmente a sua própria - detectar os talentos nascentes e os desvios; pessoas com um permanente compromisso com a música e com aqueles a quem pretendam iluminar; pessoas, por fim, com uma visão nítida da música que se pretenda ter. Meros amadores estão longe de serem inúteis, mas acabam muitas vezes por ignorar aquilo pelo que mais devem lutar: uma intensa vida musical local, da qual participem. Esse tipo de crítica é sem dúvida subjetivo, pois lida com valores. Mas não se pode deixar de reconhecer que poderia ajudar muito nosso trabalho de educadores.

Não se pode nem se deve criar quaisquer empecilhos na esfera do consumo ou da produção de música – uma forma intolerável de dirigismo – mas se pode inserir uma política cultural aditiva, na esfera da circulação de música. Coordenações de programas oficiais de música, por exemplo, evitariam a alienação e aumentariam o intercâmbio desejável, se exigissem dos conjuntos e solistas estrangeiros que nos visitem - valores verdadeiros ou, não raro, criaturas de um marketing associadas a uma pseudo-sofisticação nossa - a presença sistemática de pelo menos uma obra local, nacional, ou pelo menos ibero-americana ou ibérica nos programas apresentados, desde quando são todas objeto de discriminação. Nossas platéias, mesmo as mais educadas, não se tendo beneficiado de uma sistema de educação musical que prima pela ausência da escola comum, necessitam convencer-se dessa música boa que nos cerca, mas que não tem o atrativo dos importados, passando para um nível de apreciação mais profundo e, tanto quanto possível, liberado de ideologias. Curiosamente, esse tipo de alienação não ocorre tanto, ou em grau tão apreciável, no domínio da literatura e das artes plásticas.

À guisa de exemplo, bem se pode pensar em como se sentirá o colega (um dos muitos eméritos verdadeiros da Escola de Música desta Universidade) que regendo um excelente concerto do Madrigal universitário, executando em primeira audição mundial uma composição sua, obra de porte, significativa, em homenagem aos cinqüenta anos da Universidade, não recebe uma nota sequer da crítica, nem mesmo a notícia do que ocorreu? Assumamos também a culpa disso, e passemos a formar críticos, administradores de cultura musical, empresários musicais, agentes capazes de captar recursos e utilizá-los bem para a realização de projetos significativos.

Presentemente, o Brasil tem um Ministério da Cultura, no plano federal. Tem Secretarias Estaduais de Cultura, Departamentos ou Fundações, nos estados, o que alguns municípios tentam reproduzir nos respectivos âmbitos. Mecanismos importantes de captação de recursos estão sendo desenvolvidos, principalmente tentando associar projetos culturais ao patrocínio de empresas, por via de isenção de impostos. São porém meros mecanismos que dependem de correções para que o incentivo à cultura não se torne uma cultura de incentivos. Buscam a profissionalização, não necessariamente dos competentes, bem como uma capacidade de auto-sustentação. Tendem nesse sentido a omitir aqueles aspectos da cultura que não têm visibilidade imediata ou valor de mercado, mesmo que contenham parcelas inestimáveis da identidade cultural do brasileiro. Não há ainda, entretanto, uma sistemática de planejamento cultural, cujo principal objetivo pareceria dever situar-se na área da educação continuada do homem para a mudança acelerada em que se vê envolvido. Com efeito, pela globalização da economia, avanços gigantescos nas comunicações e na informática, e resultante desemprego, pô-lo ao par das linguagens contemporâneas, aumentar-lhe a capacidade de auto-expressão, incentivar a assunção de responsabilidades, reciclá-lo, são passos indispensáveis para que se possa ter esperança em um novo humanismo. A música tanto pode ser um agente conservador, quanto um promotor da mudança, sendo portanto parte desse quadro. Testemunhos disso são os estudos atuais de formação da identidade cultural através da música, à sua maneira uma retomada de uma antropologia psicológica dos anos 30, preocupada com personalidade e cultura, isto é, nas relações entre as duas.

Ao tratarem de música, etnomusicólogos se confrontam basicamente com duas alternativas. Uma delas, a de abordagem mais antiga, descartada durante várias décadas e apenas retomada a partir dos 70, consiste em buscar ou definir os universais da música, universais empíricos, isto é, da experiência musical de todos os povos do mundo. Uma versão mais radical do que seriam os universais lhes daria uma formulação matemática, considerando-os como o conjunto de condições necessárias e suficientes para que houvesse música e que distinguisse música de não-música, dentre todos os eventos sonoros possíveis, em qualquer lugar e em qualquer época. Implícita aí está uma definição unitária, universal, de música que simplesmente não temos, passando uma coisa a depender da outra. A crença numa linguagem universal porém existiu, foi considerada coisa do século passado, mas subsiste ainda hoje. De um ponto de vista prático, teríamos de buscar na experiência musical o um no diverso aristotélico. Os procedimentos que visam isso seriam os chamados nomotéticos, isto é, os que vão de encontro ao genérico, buscando leis que rejam toda e qualquer música. Isso foi a postura da Musicologia Comparativa alemã até a Segunda Guerra Mundial e que se refletiu em dois tipos de abordagens. Uma, a busca de aspectos específicos que todas as músicas tenham em comum. A outra, o estabelecimento de uma moldura conceptual para a análise de música e sua descrição, com amplitude suficiente para absorver todas as diferenças concebíveis.

Essa questão do "em qualquer lugar" ou "em qualquer tempo" também necessita ser definida: estariam esses traços presentes em qualquer instante de música, ou em cada enunciado musical, ou na experiência musical de cada pessoa, ou na experiência musical de cada comunidade musical, ou em toda cultura, ou em cada repertório musical? Vemos assim que partimos da própria definição de música para contextos cada vez mais espaçosos. Haveria, conseqüentemente, uma tipologia e uma hierarquia de universais em música, além dos quase-universias e universais estatísticos.

Ainda que não tenhamos ido muito longe, em termos de generalizações, por essa via, Bruno Nettl conclui que a despeito da enorme variedade das músicas do mundo, as maneiras escolhidas pelas pessoas para fazerem algo parecido com o que chamamos música são mais restritas que as fronteiras do imaginável (1983: 43). 2

O segundo caminho tem se concentrado na busca das diferenças, tarefa dos procedimentos idiossincráticos, nesse caso sob a presunção de música como uma linguagem não-universal: as músicas do mundo constituiriam um conjunto de sistemas musicais mais ou menos independentes. Isso surpreenderá a muita gente que ainda repete que a música artística européia, digamos, a 5ª Sinfonia de Beethoven, seja universal. Estão confundindo cosmopolitismo e difusão com universalidade, ao que tudo indica.

Na abordagem diferenciada das culturas musicais também temos questões a definir. Onde vamos buscar as características típicas de uma música? Se de um ponto de vista sociológico, poderíamos nos apropriar de modelos da lingüística, que tem andado à frente na teorização das ciências sociais. Poderíamos considerar "comunidades musicais" como conceito afim ao de "comunidades lingüísticas", estas constituídas por pessoas que se comunicam regular e consistentemente, aquelas pelos diferentes agrupamentos de indivíduos que partilham de uma mesma música. Se de um ponto de vista psicológico, poderíamos tomar um indivíduo como unidade, passando ao inventário total da música que conhecesse. Os lingüistas chamam isso de "idioleto", no caso um "idioleto musical". Esse idioleto musical, individual, seria como um diagrama feito de círculos concêntricos: do centro para a periferia as diversas músicas iriam se dispondo, a partir daquela que realmente pertence ao indivíduo, seu centro, a outras das quais partilha, mas cada vez menos familiares ou mais distanciadas. Acabaríamos talvez naquela remota capacidade residual de reconhecermos algo como parecido com o que chamaríamos de música, por via de uma herança genética comum à espécie humana, isto é, um universal biológico como quer John Blacking. 3

No estudo da distribuição espacial e temporal tem-se também observado que não há uniformidade no interior das unidades escolhidas. Centros e periferias aparecem tanto nos estudos de áreas musicais, quanto nos de períodos históricos, os centros reunindo as características definidoras, as periferias mostrando a transição, certos aspectos desaparecendo e novos aspectos surgindo, sendo difícil estabelecer os exatos limites. Se se tomam os idioletos como base, as músicas do mundo se revelam ainda mais diversas.

Descrições de música são geralmente feitas pelo critério de estilo, isto é, um critério formal em que se reúnem os elementos que unificam e ao mesmo tempo distinguem as características de músicas de acordo com vários pontos de vista: período, região, gênero, compositor individual ou executante, uma obra ou conjunto de obras em relação a uma outra obra ou conjunto de um mesmo compositor. Essa noção de estilo deriva da retórica, de uma tradição que distingue a maneira do como é dito (estilo), daquilo que é dito (conteúdo).

A descrição de música pode também ser feita pelo conteúdo. No caso de música, entretanto, essa distinção entre estilo e conteúdo é difícil de fazer. Ainda Nettl (1983: 48) submete como conteúdo aquela parte das canções que não se altera no processo de transmissão oral, sejam escalas, modos, métrica, forma, e estilo de cantar. Em suma, nesse caso o conteúdo seria ainda um aspecto formal, o que é difícil de conceber em termos da tradição retórica. Nettl reserva então ao conteúdo a aceitação ou não de uma nova peça pela comunidade que partilha de um estilo. Ora, estilos podem ser descritos estatísticamente. Por exemplo, há programas de computador capazes de compor peças no estilo de Mozart, de Haydn ou de quem bem seja, desconcertantemente parecidas com o que seriam autênticos Mozart e Haydn. Causam a mim mal estar. Jamais as executaria possivelmente porque algo do conteúdo, se seguíssemos o ponto de vista de Nettl, estaria faltando. Não se trata aqui de uma simples questão formal de escala, modo, rítmica, métrica ou o que for que considere essencial, que não se altere na transmissão, e do qual dependa minha aceitação. O que não está satisfeita é a qualidade humana, a identidade dos compositores de D. Giovanni e de A Criação, sua genialidade que escapa à receita. É com eles que eu me comunico, a música é meramente veículo. Mas com isso, devo confessar, passo ao domínio da transcendência, da sacralidade, da qual talvez não possa escapar.

Vemos que as relações entre músicas, indivíduos e grupos é matéria complexa. Envolve certamente a formação da identidade das pessoas e dos grupos. Música tem funções e usos múltiplos cuja análise, entretanto, nos levaria muito longe e há um sarau de cantigas a serem executadas. Foi pretendido como uma sondagem dos idioletos e das comunidades musicais aqui reunidos. Vejamos no que dá: acredito que a música que será aqui executada, que vai de cerca de 1810 a 1959, de um pré-romantismo como o de Domingos Borges de Barros, Visconde de Pedra Branca (1780-1855), poeta associado à admirável musicalidade de Joaquim Manoel da Câmera (floresceu em torno de 1820), ainda que musicalmente iletrado, passando pelo romantismo de poetas como Castro Alves (1847-1871) e Plínio de Lima (1847-1873), dentre outros, e de músicos como Domingos da Rocha Mossurunga (1807-1856) e Xisto Bahia (1840-1894), para chegar ao modernismo de Mário de Andrade (1893-1945) e Villa-Lobos (1887-1959), ou à contemporaneidade de Vinícius de Moraes (1913-1980) e Cláudio Santoro (1919-1989), seja de fato uma das nossas músicas. Música de raiz. Foram distribuídas notas minuciosas para os que desejem informações sobre cada uma das canções que Andréa Daltro, a quem também agradeço, cantará. Outros poderão refletir, posteriormente, sobre o que ouviram, indagando de si próprios por que gostaram ou não gostaram. Podem, evidentemente, como o Benda, optar por ignorarem o problema, ou acharem simplesmente que o problema não exista. Quem sabe, podem até mesmo pensar que essa música seja boa, tão boa quanto qualquer outra, ou até mesmo melhor, porque é nossa música e nela nos reconhecemos.


Notas de Rodapé

  1. Lido pelo autor na cerimônia em que se lhe fez outorga do título de Professor Emérito, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, em 23.10.96, como "Prólogo a um Sarau de Modinhas Brasileiras". As notas relativas ao programa executado constituem um artigo anexo a este. Ver "Notas para um Sarau de Modinhas Brasileiras" . [Volta]

  2. Muitas das idéias gerais estão apoiadas na importante obra de Bruno Nettl, The Study of Ethnomusicology: Twenty-nine Issues and Concepts (Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1983).[Volta]

  3. Ver John Blacking, "Can Musical Universals Be Heard?" The World of Music 19/1-2 (1977): 14-22.[Volta]